sábado, 17 de maio de 2008

ESQUADÃO 297 EM ANGOLA - 19

ABASTECIMENTO EM SAURIMO
Os componentes oriundos da Gabela, do Esquadrão 297, passaram a ter em mãos o controlo do movimento interno, do novo agrupamento eventual 350, que se formara do Batalhão com o mesmo número, para servir na Lunda Norte.
A fraca mentalidade de muitos elementos do novo esquadrão, era uma fatalidade notada, tornando-se visível, o facto de os respectivos comandantes na origem, quase todos, terem optado por enviar novatos ou tudo o que era material humano de interesse menor, o que tinha de ser entendido como lógico.
No entanto, o caso do sargento que iria coordenar o sector da alimentação já "condenado" a ir embora afim de ser presente a tribunal militar e o mais novo alferes à frente do pelotão do Esquadrão comandado pelo Capitão Alves Ribeiro, este não terá tido esse critério. A nomeação terá obedecido a outros parâmetros, não haveria motivos para discriminações. O pessoal, regra era de primeira, ficou provado.
Ter sido por interferência do Sargento Pinedo, também ido da Gabela, sem mostrar pretensões a qualquer distinção, que a reestruturação foi levada a efeito, com a dignidade que muito devia agradar a Alves Ribeiro, conhecida como era a sua estrutura moral, se tivesse ocasião de observar o feito.
O Onofre tomou o lugar do sargento, já ia proscrito, o cabo que seguira com a especialidade de escriturário, fora substituído pelo Soeiro, para a cantina a nomeação recaiu no Paulo, na enfermaria um especialista, na cozinha um soldado, na padaria também dois militares rasos, tudo lugares que automaticamente revelaram importância para a manutenção da força.
Todos estes postos funcionavam bem. Mesmo muito longe mostravam as virtualidades do agrupamento donde eram originários, o Grande Esquadrão 297.
Depois da reestruturação, a vinte e um de Agosto de 1963, juntara-se nas instalações, que iam servir de quartel na vila da Portugália um grupo a deslocar-se a Henrique de Carvalho (Saurimo), com uma camioneta GMC, composto por um sargento, responsável pelo rancho de uma companhia de Infantaria, um cabo com as mesmas funções, num pelotão de Artilharia e o recente nomeado Onofre, equivalente, do esquadrão eventual além do condutor.
A viagem vai ser contada, porque se tratou do que pode ser vista como odisseia, daquelas que as guerras podem proporcionar, em inóspitas regiões, como foi o caso.
Saíu-se às cinco horas da manhã. Tudo a correr bem, até que às onze e trinta, hora a que se deu uma avaria, na única viatura que seguia, cuja foi remediada no meio de uma tórrida temperatura.
A seguir foi retomado o caminho com o atravessamento, pela ponte de madeira, que servia de passagem sobre um estreito rio, seguiu-se de imediato uma ravina, onde a viatura voltou a avariar.
Uma questão, e os meios para a resolver? Ali estavam os quatro elementos, que compunham a expedição de braços cruzados!...
A única coisa que se podia fazer, era olhar com deslumbramento a linda paisagem. Terra desabitada em todo o vasto redor avistado, muitos quilómetros e sem qualquer meio de transmissão, que numa situação de guerra do século XX, seria da maior conveniência.
O chefe da expedição, que naturalmente tinha de ser o sargento, como era chegada a hora do almoço e em virtude de se estar à beira de um rio, água portanto, um bem essencial, a primeira reacção foi a de se tratar da alimentação.
Uma fogueira, panela com bom bacalhau, batatas, couves e os necessários acompanhamentos, com que todos esses saiu uma lauta refeição, verdadeiramente campestre.
Só depois se equacionou, profundamente, a precária situação!
- Falou o sargento, mostrando-se muito calmo e ponderado, mostrava experiência vivencial, além do posto mais elevado, a sua naturalidade era visível, também porque mais velho e por ser um dos que tinham sido novamente chamados às fileiras, em razão do problema de África. Pelo exposto, as suas palavras e resoluções foram bem aceites, mesmo depois de ter dado a palavra a todos.
Sentenciou que o grupo podia estar ali, como média, três dias até que passasse alguém, em viatura que se deslocasse em busca de socorro.
O assunto ficou por ali, havendo a certificação de que para o espaço de tempo havia alimentos suficientes, ou não se tratasse de uma embaixada constituída por responsáveis pelos ranchos de agrupamentos militares.
O Onofre, como se vivesse uma situação normal, preparou-se sem constrangimento, pois avistava-se um imenso comprimento do rio, de águas cristalinas, a banhar o terreno, o mesmo que se mostrava, atravessando uma paisagem extremamente bela.
Chegou, entretanto, a noite e todos se preparam para a passar, dormindo debaixo da GMC.
Naquele cenário deslumbrante, onde os ruídos que surgiam da floresta, eram como uma música celestial, a dormida daquele vinte de Agosto de 1963, acabou por ser balsâmica.
Só se acordou no dia seguinte, com o nascer do astro rei, após o que atravessaram o caminho dois indígenas armados de "canhangulo" (continuavam as espingardas improvisadas).
Mal sabiam articular algumas palavras em português, mas fizeram-se entender, tanto mais que, se tinha aprendido várias expressões de quioco, a língua nativa da vasta região, o que deu para perceber o que rapidamente articulavam.
Saiu: "Mata" (senhor) arma servir para matar tigres" e depressa se eclipsaram, selva fora, tão rapidamente como apareceram, deixando, finalmente todos apreensivos, pois nunca se tinha pensado em animais ferozes, naquele outro mundo onde a luxuriante vegetação esconderia um reino animal de temer.
Passou uma manhã e chegada a hora, preparou-se o almoço. A panela, a fogueira, na margem do rio. De novo os providenciais, mantimentos como bacalhau, batatas, couves, cenouras, nabos, azeite, vinagre e alhos..
Depois da cozedura estava a passar o que se esperava: Um chefe de posto, um mulato, no Jeep que lhe estava distribuído, já que ocupava um lugar na estrutura colonial, controlando toda a população nativa da zona de Xá-Cassau, onde estava instalado.
Distava cerca de trinta quilómetros do ponto em que ficara imobilizado o núcleo militar em deslocação de serviço.
Aquele elemento estatal prontificou-se a prestar a assistência necessária, até que, por volta das dez horas da noite já se tinha atingido as instalações do seu posto.
Devido ao avanço do dia e a uma maior proximidade do destino, a cidade capital da Lunda, aproveitando a hospitalidade oferecida, jantou-se e dormiu-se em Xá-Cassau.
No dia seguinte estava a tratar-se dos abastecimentos, que nos tinham levado aquela cidade e dado que não se conseguiu resolver tudo no mesmo dia, acabou por se pernoitar num destacamento da Intendência Militar local, equipamento ideado para abastecer toda a tropa estacionada na região.
Veio o dia vinte e quatro do mês de Agosto, às catorze horas, já com todos os abastecimentos possíveis deu-se o regresso.
Faltavam as cervejas "cuca" destinados às cantinas, porque poucas caixas se adquiriram, em virtude de na véspera ter ali passado um Batalhão, com o tempo completo, rumo a Luanda, com destino ao barco que os levaria de volta ao "puto", na versão local, adoptada por toda a tropa, por ser gira e abreviada.
Dava para perceber uma invasão de Angolares, por cada iminente passagem à peluda, pois era normal o pagamento de ajudas de custo aos militares, em fim de comissão, com o natural regresso.
Além de ser o primeiro de passar naquela povoação, de regresso à metrópole, a euforia era tal, que cerca de seiscentos militares, detentores de quantias de avultadas somas de dinheiro jamais detidas por muitos, numa cidade pequena, era lógico o esgotamento de produtos aprazíveis e de consumo imediato, existentes em qualquer cantina da tropa.
Às dezasseis horas, nova avaria na GMC. A tipologia daqueles pesados carros que, cedidos ao exército de Portugal, depois de terem servido os Aliados na Segunda Grande Guerra, que tinha devastado a Europa, havia cerca de vinte anos, estava muito ultrapassada. No entanto a equipa em que se integrava o Onofre, fez chegar o carro ao seguro posto de Xá-Cassau, que se tornara circunstancialmente referência estratégica.
Voltou a pernoitar-se nas suas instalações mais uma vez, retribuída com algumas "cucas", das que se puderam trazer da cidade, onde em cada dez pessoas, com quem se cruzava, nove eram fardadas.
A vinte e cinco, com a pesada viatura a reboque, de uma outra, fazendo parte das duas que, de Henrique de Carvalho, haviam chegado entretanto, em socorro, chegou-se ao rio já referenciado que, ficava sensivelmente a meio caminho do Dundo, onde com receita igual às anteriores descritas, se procedeu ao ritual da refeição do meio dia.
Tudo isto era passado por Onofre, em jeito de bonomia, o pior seria o estado de inveja que poderia trazer a algum adepto do campismo, com o dom da ubiquidade, que pudesse observar a bucólica cena.
Pelas oito da tarde, a GMC mesmo a reboque, teve outro acidente, contou apenas de uma mola partida e mais um pequeno atraso.
Às nove horas, chegou-se enfim, ao aquartelamento de Artilharia, perto do Dundo, deixando na origem um dos cabos que integrava a expedição. Ali se processou o que seria o último jantar do grupo.
Deixando também o sargento, o Onofre pôde dormir na tranquilidade do seu alojamento nas instalações provisórias, próximo do Luachimo.
Daniel Costa – in JORNAL DA AMADORA

14 comentários:

Ana Maria disse...

Uma boa noite para você.
Agradeço pela visita, e pelas
palavras dirigidas .
Visitei seu cantinho, e li esse
texto.
Rico em informações.
Primeira vez que fui, e vou voltar
mais vezes.
Você é de Portugal?
Através dos meus 2 blogs,
fiz muitos amigos de Portugal.
Bom final de semana.
1000beijinhossss

poetaeusou . . . disse...

*
óptima terapêutica.
sinto-me bem,
.
continua
,
*

Paula Raposo disse...

Gosto de ler histórias baseadas na experiência e contadas desta maneira aliciante. Beijos.

RENATA CORDEIRO disse...

Ótima "denúnica". Voltarei para lê-la melhor.
Visite meu blog:
wwwrenatacordeiro.blospot.com/
Não há ponto depois de www
Beijos,
Renata Cordeiro

rosa dourada/ondina azul disse...

Gosto de ler como se de uma história se tratasse.
Afinal mais não é, do que factos bem reais e vividos em pleno, por todos os que ali se encontravam :)))


Boa semana,
Beijo,

xistosa, josé torres disse...

Foi na alimentação. Era VAGOMESTRE, que mexia com tudo.
Comia-se bem ou mal, conforme o "chefão".
Até os cozinheiros, tinham que pegar em armas, se não sabiam cozinhar.

Posso orgulhar-me duma coisa.
Só cozinhava quem sabia ... e eu sabia e podia exigir ... foram para outras tarefas.

Onde tive "poder", só havia uma cozinha ... a boca e estômago, de oficiais, sargentos e praças era igual.
E cada um recebia 20$50, por dia para alimentação.

É do pouco que me posso orgulhar ... cada homem, uma boca para alimentar!

Das comidas mais caras, era o bacalhau e as tripas, (vinham em latas de 5 kg, secas e da Argentina. Uma refeição de tripas, mesmo com feijão roubado, era cara, para os 20$50 diários.

É a primeira vez que oiço falar em tigres ... OUVI, não vi leões, no Sul, no deserto de Moçâmedes e posso dizer, que mesmo no alto duma Berliet, o seu urro impunha respeito e arrepiava.

As GMC, pelos vistos, fizeram uma guerra completa de mais de 20 anos, depois de vindas da sucata !!!

Amigo Daniel ... há sítios que não passei e onde não me revejo, mas o pior era não haver "Cucas" ou "Nocal", vá lá até a Sagres, que já não me recordo, mas era mais cara.
Talvez esteja a delirar com alguma Cuca.

xistosa, josé torres disse...

Talvez me tenha expressado mal no início.
NUNCA FUI VOGOMESTRE !!!!!!
Mas corri com dois deles e um, foi meu colega de curso no Porto, mas era ... (vou-lhe chamar incompetente!!!)

Daniel disse...

Ana Maria

Sou de Portugal, nasci a cerca de 90 Km de Lisboa. Após Angola adoptei viver na capita, a cidade dos maus sonhos de então e de hoje. Como também gosto de acamaradar, espero que nos falemos mais vezes, gosto de compartilhar
Quando esta saga acabar, continuarei presente.
Amigos colegas?

Desde Lisboa, váo também os beijinhos
Daniel

Daniel disse...

poetaeusou

Folgo, agradeço e continuo até chegar ao fim, depois outras coisas virão.

Daniel

Daniel disse...

Paula Raposo

A experiência ficou registada in locco, em diário, creio que raro.
Dou a partilhar, com prazer.
Volta sempre.
Beijos, Daniel

Daniel disse...

Renata Cordeiro

Obrigado, gostarei de comentar o teu comentário.
Estou para compartilhar!
Beijos, Daniel

Daniel disse...

xistosa

Posso dizer que nos sete meses que substuí o vagomemtre, o rancho da malta era do melhor. Dispenso de outros comentários, pois o facto aparecerá aflorado. Fazer comida? Nem estrelar um ovo, ter ideias e transmiti-las, sobretudo sobre peixes é comigo. A responsabilidade da ementa era comigo, mas dispunha de um cozinheiro, que ia comigo e fez-se sucesso. Sucesso na tropa pode ser para rir, mas para mim missão, é missão!...
A velha dobrada!... Sabes como me aconselhou o cozinheiro? Menos do que os regulamentos mandam, pouca, sobra verba para bifes maiores, vão agradecer, verás!
Tigres, achei estranho!...Nunca vi, eram mesmo espiões e aventaram com essa panaceia!...
Vai uma "Cuca"?
Daniel

Daniel disse...

xistosa

Daqui é que ía tudo estruturadinho. As vicissitudes, no local eram outras. Os incompetentes, os impoderáveis, os necessários improvisos modificavam as estruturas por força.

Daniel

Daniel disse...

Rosa

Ao fim e a cabo, é história vivida e anotada ao dia. De outra maneira não seria possível narrá-la dessa maneira, porque não há ficção, a não ser em nomes apenas por opção.
Beijo
Daniel