sexta-feira, 9 de maio de 2008

ESQUADRÃO 297 EM ANGOLA - 15

A CIDADE DA GABELA
Tinha chegado a altura de todo o Batalhão 350 regressar, por dois dias, ao Grafanil, local de passagem para Quanza Sul, onde ia estacionar em serviço e ao mesmo tempo gozar, como de um prémio, pelo tempo em operação a Norte, onde se estava a desenvolver o terrorismo, uma das causas próximas, que vieram a originar a Revolução de Abril de 1974.
Ainda a sete de Abril de 1963, toda a gente, mormente o pessoal do Grande Esquadrão, em formatura ouviu ordens e boas palavras do respectivo comandante, para gozar bem, a breve estadia na cidade de Luanda. No mesmo dia em que o Onofre, com a sua camaradagem, experimentou as delícias de um jantar num bom restaurante da cidade, a mesma que num exame de instrução primária, naquele tempo chamado de segundo grau fazia lembrar, complacentemente na oral a certo examinando, a capital de Angola com o trocadilho - "terra onde a lua-anda".
No dia seguinte, deu para verificar, que o inóspito Grafanil de Janeiro de 1962, em que eram estreadas as primeiras casernas, em 1963 podia ser visto como uma grande cidadela.
Já não havia carros civis a parar a toda a hora, junto aos portões, prontos a transportar soldados disponíveis até à cidade, nem as camionetas militares, a hora certa, para condução do pessoal que desejasse passar as horas de folga nas delícias da civilização.
Havia casas de banho, em lugar de sentinas e ainda duas salas de cinema a funcionar diariamente e como a exigência se avolumara, lá se formavam carreiras regulares de "maxibombos" (autocarros), para a terra que os militares estavam a transformar numa novíssima "Somorra", bem enquadrada pelo Atlântico, naquela baía africana linda de morrer.
No dia seguinte ainda se dormiu em pleno Grafanil e como, ao fim e ao cabo, o que havia ali mais a fazer, era gozar o máximo na capital portuária da África Ocidental Portuguesa, foi esse o estímulo que cada qual concedeu a si mesmo.
Na madrugada do dia nove, por terminado o efémero idílio, o Esquadrão retomou a sua rota para o concelho do Amboim, com a capital sedeada na cidade da Gabela, onde estacionou o grosso, com o comando.
Para o Onofre, toda a novidade era aventura, estava a dar-se uma nova fase da mesma, para o que contribuía, todo aquele magnífico cenário africano.
Do Grafanil passou-se pelo Dondo, onde teve lugar o almoço, depois aproveitou-se para uma visita à famosa barragem de Cambambe, donde se seguiu viagem até Quibala, com a passagem da noite, em cima das caixas de camionetas civis, com algum frio, a parecer estranho em África, além da habituação, em contraste adverso no norte.
Às quatro da manhã seguiu-se até ao destino, a cidade da Gabela.
Na entrada do que sendo uma cidade ainda nova, não deixou de se anotar, o desencadear de uma chuvada, que obrigou toda a tropa a ter de esperar que secasse o trilho de terra batida, que provia o seu acesso, para conseguir percorrer as poucas dezenas de metros que levavam ao primeiro edifício, a servir de quartel, enquanto a companhia a substituir se encontrava instalada noutro local, com o fim de transferir o material e naturalmente a missão.
O contingente substituído, mesmo a nível de praças novas experiências transmitiu.
A grande e interessante surpresa, tinha a ver com as facilidades encontradas no relacionamento com mulheres,
Ainda estava longe de ser conhecida a revolução sexual, que já era factual por aquelas paragens.
Agora, com a acomodação no edifício, que fora um antigo presídio colonial, cujos desterrados, da metrópole motivaram, dizia-se, a fundação da Gabela, apontava mesmo a origem de alguns comerciantes estabelecidos, o próprio Onofre tinha tido como companheiro de trabalho, um ex presidiário que fora parar naquele desterro.
Estava-se pois, na capital do Amboim, na província do Cuanza Sul, uma das zonas agrícolas mais ricas de Angola. Além de muitos "arimbos" (fazendas), onde se cultivava uma das melhores variedades de café do mundo, integrava a grandiosa C.A.D.A. - Companhia Agrícola do Amboim, servida por comboio até à vila de Porto Amboim, na orla marítima, com o seu porto para escoar a grande produção verificada.
Após a definitiva instalação, os militares, tudo jovens rapazes, evidentemente -"com eles nem o diabo quer relações" - começou a ser posto em prática tudo o que ali se tinha á aprendido, extra obrigações militares.
Em breve, cada qual tinha a sua lavadeira num dos "muceques" (aldeias de sanzalas) periféricos e a consequente "cubata", onde passar a noite comunhão idílica, com a preta, que passara a tratar da sua roupa.
Tudo se iniciava assim:
- Queres ser a minha lavadeira?
- "Eu querer minino, mas só lavar roupa, pés não lavar, não ser dessas"!...
Era a deixa essencial, para a mulher se fazer conquistar, pois nessa mesma noite já a "cubata" estava à disposição para o lava-pés, uma maneira mais airosa de referência ao acto sexual.
Assim quem não tinha o nome na ordem de serviço, podia ser encontrado a passar a noite numa das "palhotas" do bairro Sousa ou do Aricanga em companhia feminina.
Chegou o Dia de Páscoa, a catorze de Abril de 1963 e a escala de serviço, apontava a nomeação do Onofre para Cabo de Dia, o que dava como consequência o ficar a exercer um serviço interno ao Esquadrão, provocando a impossível de saída, facto que diferenciava bem o tipo de trabalho, em quartel de uma cidade, em que tudo podia ser programado, ao invés do exercido em pleno local de intervenção de guerra, onde a ordem podia ser alterada, pelos mais variados imprevistos, causados por alertas, que poderiam surgir a qualquer momento.
De qualquer modo, a estabilidade era uma nova evidência a que todo o pessoal se estava a adaptar, entre o exercício dos mais variados serviços e os dias de folga, em que se podia visitar a cidade, estar no único estabelecimento de café existente, ir à sessão semanal de cinema, ou a jogos de campeonatos distritais disputados no A.R.A. - Associação Desportiva do Amboim, à piscina municipal e ao interessante Mercado Municipal.
Ao domingo, uma das opções, era a visita aos "muceques" que se situavam em redor da cidade, sobretudo ao do Aricanga, que dispunha de uma sala de cinema, destinada a índigenas, mas em que os militares, da classe de praças, não menosprezavam assistir à sessão domingueira.
Também se voltara tornar usual ir dominicalmente à missa, na bonita Catedral da cidade.
A dezasseis de Abril o Onofre, por escala, constituiu um grupo de serviço de patrulha, como sempre, composto por três elementos: Sargento, cabo e soldado raso, montados em Jeep, a tarefa era vigiar tida a cidade, em que se incluiu a Roça dominada por Covil do Perigoso, onde foi oferecido um lanche aos militares, com a inclusão de umas "cucas" fresquinhas que foram divinais, num dia que se apresentava tórrido.
Das tropas estacionadas na Gabela, faziam parte núcleos militares, nas vilas de Quibala e Porto Amboim, daí que surgissem também viagens de serviço, normalmente transporte de informações, necessárias a todas as redes de operação dos exércitos.
Em vinte de Abril um Jeepão com pequeno grupo de militares, onde ia integrado o Onofre, foi designado para se deslocar a um desses destacamentos, em Porto Amboim: A operação acabou por se gorar, devido a uma tempestade que passara pela zona, fragilizando ainda mais, uma velha ponte de madeira do caminho, que não aguentou a passagem da viatura.
A tropa, com o seu próprio esforço, conseguiu retirar o veículo. Mesmo assim a missão ainda seguiu em frente até ao grande colosso da C.A.D.A. onde se almoçou o inefável pacote de ração individual de reserva.
Depois o comandante, um sargento, devido ao dilúvio que por ali tinha passado, verificou não haver condições de prosseguir a viagem e optou pelo regresso à base.
Ficou contrariado o grande desejo aventureiro do Onofre, de lhe calhar em sorte uma missão à vila portuária de Porto Amboim, mas mesmo assim, detectou motivos de nota.
A determinada altura, estava-se como que sem orientação. Abordado um nativo, à pergunta:
- Porto Amboim, ainda fica longe?
- Fica sim!...
- Feita a mesma, ao contrário, Porto Amboim fica perto?
- Fica sim!...
A interpelação foi feita a outros transeuntes nativos, sempre com o mesmo resultado.
Ficou logo a certificação, que os indígenas a viver mais afastados dos centros dominados pelos colonos, só sabiam alguns monólogo da língua portuguesa.
Verificou-se o grande desenvolvimento agrícola, que realmente existia na Província do Cuanza Sul , pois grande parte do caminho estava bordejado de laranjeiras, que na circunstância e com a colaboração do condutor, a acção dos militares fazia juncar de laranjas o estrado da viatura, que depois transportou para o quartel, tudo executado em andamento.
Anotou-se posteriormente, que as missões seguintes, do Esquadrão à vila da beira-mar, foram feitas no comboio do Amboim.
Ouvir descrever as peripécias de quem efectuava a viagem era, como que, ouvir um conto de aventuras.
Cabe descrever o elevado tempo gasto, para andar, naquele comboio, cerca de cento e vinte e quilómetros de linha, ida e volta. Tinha de andar em volta de uma montanha, por onde passava, ainda próximo dos laranjais.
Dava o tempo necessário, aproveitado nas calmas, para encher o bornal de frutos daquelas árvores e depois de devidamente abastecidos, voltar a tomar o lugar na viatura do caminho-de-ferro.
Estava-se perante parte do folhetim da vida que se oferecia a quem estacionava em serviço militar na Gabela.
Isto e muito mais, fazia o Onofre, oriundo de meios modestos, recordar o título e o conteúdo do livro de Camilo Castelo Branco - "Riquezas do Pobre e Misérias do Rico"!...
Daniel Costa – in JORNAL DA AMADORA

16 comentários:

poetaeusou . . . disse...

*
regredi
a bijagós !!!
,
sem comentários,
tenho tudo trancado
no disco rigido do meu baú,
,
saudações, amigo
,
*

Daniel disse...

poetaeusou

Deduzo que gostas de ver, sem comentários.
De facto, Bijagós, pelo que oiço, de suave nada tinha.
Saudações e obrigado.
Daniel

impulsos disse...

Olá Daniel!
Vim até ao teu porto de lembranças, encher a minha "sacola" do teu saber e das tuas recordações de tempos idos, mas bem presentes na tua memória...
Ainda me ri ali com o "lava pés".
Expressão bem engraçada para definir o acto!

Beijo

Daniel disse...

impulsos

Obrigado, pela companhia e pelas boas palavras.
Olha que, "lavar pés" era mesmo o termo empregue. Começava-se por achar piada, depois passava-se, inevitavelmente, à prática.
Enfim!...Rapazes novos, "nem o diabo quer nada com eles"

Beijinhos
Daniel

Menina do Rio disse...

Gostei da maneira como escreves traduzindo algumas palavras, coisa que ninguém costuma fazer e as vezes ficamos sem entender; como o caso dos "maxibombos" "arimbos" e "muceques".

Gracias pela visita e a ti deixo o meu beijo

Daniel disse...

menina do do rio

Achava-se muita piada aos nomes, locais e adoptavam-se. Se queres saber mais, até à revolução, esses nomes adoptados nomes eram muito utilizados, hoje sõ chinês. Como querias que fossem entendidos no Rio?
Por isso há traduções.
Retribuo a amabilidade com um beijinho.
Daniel

Olinda disse...

Muito interessante, o que lembras. :-)

Cristiana Fonseca disse...

Olá Daniel,
Adoro teus textos, e a classe e encanto que vc os escreve, fico horas lendo, passo horas aqui , o que é muito agradável, sinto me presenteada.
Beijos,
Cris

Daniel disse...

Ola cinha.a

Obrigado pela bondade de apreciação.
Volta sempre, ficas o convite.

Daniel

Daniel disse...

Olá crisfonseca

Fico lisongeado e porque não?
De resto eu é que me sinto honrado com as passages.
Fica à vontade, a casa é tua.
Reconhecido, com beijos.

Daniel

Lyra disse...

É incrível a forma como as tuas palavras me prendem ao ecrã!
Indubitavelmente gosto muito de te ler e viajar nessas recordações.

Obrigada pela partilha.

Beijinhos e até breve.

;O)

Daniel disse...

Lyra

Ainda bem!... Andei dempre munido de papel e caneta, nenhum dia passou em branco e diverti-me muito. Uma aventura de vinte e sete meses, de que agora revi o filme todo.
O lado optimista, esteve sempre presente, mesmo em situações delicadas.
Volta sempre.
Beijinhos
Daniel

xistosa, josé torres disse...

Continuo a leitura.
Tão minuciosa ... só não andei no combóio até Porto Amboim.
E os limões ... amargos como o diabo, mas que misturados na água do cantil matavam a sede facilmente.
Continuo com a leitura, é que os nomes ... apagaram-se muito ... vejo-os esbatidos.

Daniel disse...

xistosa

Também não calhou uma viagem no comboio do Amboim, Aventura de que me limitei a ouvir. Confesso que nunca vivi essa dos limões, aliáz não me lembro de ver desses frutos.
De resto, os 27 meses de Angola, considereis sempre aventura, o porquê está descrito. Havia razões, que tiveram ali o fim, para um recomeço, de certo modo radioso.

Daniel

xistosa, josé torres disse...

Havia autenticas matas de limoeiros.
Tinham espinhos como aqui, mas em maior número e grande à brava.
Os limões eram pequenos e amargos até dizer basta.
Como tinha facilidade, alguém me levava alguns e eu aconselhava todo o pessoal a fazê-lo.
Como também vi matas de laranjas bravas.

Daniel disse...

xixtosa

Limões, nem doces nem amargos, nunca vi. Laranjeiras, havia uma aqui, outra ali, no meio de sanzalas abandonadas, por residentes, perto das margens do Lifune, com laranjas lindas, mas azedas.
A caminho da CADA, Amboim. havia laranjais, só de fruta doce.