segunda-feira, 19 de maio de 2008

ESQUADRÃO 297 EM ANGOLA - 20

INDÍCIOS DE TERRORISMO NA LUNDA

Não se tratava de um acaso, que já em 1963 toda a vasta Região da Lunda contava com muitos acantonamentos militares, de todas as Armas, inclusive com artilharia pesada.
Primeiro porque será das regiões de África com o subsolo mais rico, sobretudo em diamantes, depois por fazer fronteira com um país recém descolonizado, o Congo, já a viver a sua independência, com as nefastas consequências, que se conheciam.
Para quem não usasse de alguma bagagem cultural, para encaixar estes factores ou que não tivesse para se ralar com pormenores, estes factos podiam passar à marginalidade.
Na humanidade da sua pequenez, o Onofre usufruía a vivência que a mobilização lhe tinha trazido, na certeza de executar o melhor possível as tarefas que lhe destinavam, tudo no espaço temporal.
Definitivamente constituída a nova manutenção, o dia vinte e seis de Agosto foi de muito trabalho, urgia arrumar todos os géneros trazidos de Henrique de Carvalho.
Sobrou tempo, para assistir à grande festa indígena que, anualmente, se processava no Dundo, com o aval da Companhia Diamang, no seu respeito pelas tradições lúdicas.
Uma festa, deveras interessante, onde eram atribuídas medalhas e prémios monetários a nativos, que comemoravam vinte anos de serviço, após o que eram rodeados jubilosamente pelas suas várias esposas, sendo que na etnia quioca a bigamia estava arreigada na própria natureza humana.
A importância de cada homem, podia ser aquilatada pelo número de mulheres que possuía, sendo cada uma sua trabalhadora, porque no seio daquele povo o labor do campo era mister de mulheres.
A festa continuou, no mesmo recinto da cidade, com banda musical apenas de elementos nativos, com interpretação de ranchos folclóricos nativos, com modas continentais, modernas.
No prosseguimento de novas funções, o dia seguinte, começou pela ida do Onofre ao grande armazém da carne, que servia a Diamang, Companhia a que o agrupamento estava agregado, para se abastecer da maioria dos alimentos, como carnes, peixes, ovos, batatas, vinho e outros.
Na zona qualquer estrutura colonial só podia depender daquela fonte, com vários centros.
O cargo de encarregado do depósito de géneros, fazia o mesmo ter necessidade das visitas diárias ao Dundo, por vezes também à periférica Cacanda, onde se situava o aviário.
No dia vinte e sete de Agosto, houve a ida à noite, ao único cinema existente na cidade, a funcionar apenas um dia por semana, às quartas feiras.
Passou o filme "Duas Mulheres", com Sofia Loren.
No dia seguinte, a primeira quinta feira que o Onofre enfrentou o único, obrigatório portanto, armazém de géneros alimentícios da região dominada pela toda poderosa Companhia dos Diamantes, até em relação à actuação militar, que em nada podia depender do poder civil.
Tudo acabou por andar bem, pois já havia sido entregue a respectiva e necessária requisição dos bens a adquirir, tirada do livro também ali fornecido, que ficara na já posse do mesmo cabo responsável.
O chefe do poderoso armazém, que passara a tratar o interlocutor militar, pelo nome próprio, em conversa aproveitou para desenvolver o diálogo seguinte:
- "Consta ser no seu esquadrão que se fabrica o melhor pão de toda a Lunda!... "
O Onofre nunca atentara naquele grande privilégio, banal por recorrência. De facto os padeiros tinham ido do Esquadrão 297, pelo que sem se dar por isso, mantinha-se a qualidade
Viu uma oportunidade de obter favorecimento. De imediato a explorou, oferecendo àquele chefe a possibilidade de lhe ser fornecido o pão, diariamente.
Claro!... Havia um óbice, visto apenas pelo interessado, era o ter de ser um dos criados pretos a fazer a recolha.
O assunto foi resolvido com facilidade, com um cartão assinado pelo militar e que o responsabilizava, pois no esquadrão não havia problemas de raça, como impedimentos.
A partir daí os padeiros, aquartelados e a trabalhar sempre em forno, no Dundo passaram a contar com um cliente especial e o encarregado obteve a mais valia de tratamento diferenciado. As politicas da Companhia passaram a ser menos fechadas.
O novo cargo exigia muita dedicação, atenuada por ajudantes variados, para o muito trabalho a efectuar, visto que para efeitos de abastecimento de produtos comestíveis, oriundos da manutenção militar, havia dois pelotões instalados e a operar nas redondezas, adidos ao esquadrão a serem, semanalmente, atendidos naquele depósito.
Até que a doze de Setembro, o esquadrão mudou definitivamente para instalações na vila da Portugália, a verdadeira sede do poder local, do estado na zona, pelo que não se tratava de acaso. Tudo o que existia em armazém acompanhou.
A circunstância acarretou uma atenção e trabalho redobrado, até porque o gosto da arrumação era uma faceta do titular.
No dia seguinte de manhã, ainda houve muito a organizar, até que aquele departamento era, consensualmente, o mais bem ordenado de toda a nova instalação militar.
Dia vinte e seis foi recebida a visita do então Ministro da Defesa Nacional, havia que mostrar-lhe algo do novo aquartelamento.
Aconteceu, que só o depósito orientado pelo Onofre foi considerado merecedor da visita daquele alto titular da Nação.
No fundo, tinha-se ali iniciado uma existência em que a propensão organizativa, podia ser exercida com maior consistência.
Foi assim que, a fértil mente do Onofre se entregou a lucubrações mais pausadas, que andavam a assaltar o seu íntimo.
O que levaria a organização militar em 1963, a cogitar a defesa de toda a Lunda, onde não tinha chegado ainda a sublevação, instalando-se em força?
Era notória uma quase repentina cobertura de todo o território de posições militares.
Embora se pudessem contabilizar mais, mencionam-se apenas três factos, que chamaram a atenção do Onofre, para o possível embrião de rebeldia, a médio prazo, naquela imensa região de Angola.
Em primeiro lugar, a atenção recaiu sobre o peculiar da descoberta da actividade revolucionária do mulato, chefe do Correios da Portugália. Inevitável a captura do turra, tanto mais numa ausência do comandante do esquadrão, foi apanhado e aprisionado numa dependência do aquartelamento, onde sofreu sevícias de toda a ordem, de muitos militares.
Nada de estranhar naqueles tempos e circunstâncias, porque a personagem devia ser mesmo terrorista de elevado estatuto, revelando pouca inteligência relativa à posição.
É que os militares, na passagem para o Dundo, em locais, como a cidade de Nova Lisboa, tinham muitos registos, inúmeras fotografias batidas.
Utilizando o mesmo método das anteriores posições, inclusive na zona operacional: Fazer os envios dos rolos de películas, acompanhados das importâncias de custos para fotógrafos de Luanda, embrulhos sem qualquer requinte de correio registado.
Aparecia sempre tudo revelado, assim como as cópias, por vezes com bastantes repetições, sobretudo as mais bem conseguidas, com vista ao envio a familiares, amigos, namoradas e obviamente a Madrinhas de Guerra.
Todos os militares se tinham questionado pelo facto de, repente tudo ter falhado, sem excepções.
Com aquele caso, tinha chegado enfim a resposta, para a grande incógnita.
A vingança fez-se, de muitas torturas corporais, não poderiam haver outras compensações, porque os rolos teriam seguido para células terroristas sedeadas no Congo, a uns escassos oito quilómetros de distância.
O Onofre nunca mais deixou de recordar o rolo, assim desaparecido, tirado na segunda cidade de Angola, Nova Lisboa, pelo menos uma tinha como fundo o imponente busto do seu fundador, o General Norton de Matos.
Conjecturou ainda sobre o atravessamento do caminho, pelos dois pretos armados de "canhângulos", junto ao rio onde se tinha dormido sob a GMC avariada.
A defesa dos tigres teria sido só conversa para branco, pois aqueles senhores não seriam mais do que uma amostragem de células inimigas, latentes naquela imensidão, onde só se avistava atraente paisagem verdejante.
Outro facto muito recente, que Onofre vivera, sem sombra de suspeitas, debaixo de enorme árvore de manga, dentro do perímetro do aquartelamento, onde se colhiam frutos, de quando em vez, para enriquecer as saladas, a servir nas refeições.
Desenrolou-se uma conversa com um nativo, a revelar-se de mente evoluída, mesmo do ponto de vista continental, mostrava um coeficiente de inteligência razoável, o seu português era fluente, além de que também se expressava bem em francês. Era novo com namorada congolesa, pelo que passava sempre os fins-de-semana no Congo, afinal ir lá ou estar para cá da fronteira, era só uma questão de expressão linguística!...
A interessante personagem evaporou-se na noite e ali estava agora o cabo a questionar, se a mesma não teria estado ali na qualidade de espião, antecipando uma futura sublevação, afinal já vislumbrada pelas autoridades coloniais e o exército?
Ficava em aberto a questão!...
Daniel Costa – in JORNAL DA AMADORA

14 comentários:

Bandys disse...

Daniel,

Adoro seus comentários e acho sempre tão bem escritos que fico me perguntando, quando voce fara uma poesia??? hum...

Sera que a namorada é espiã??
Mil beijo no ♥
Bandys

xistosa, josé torres disse...

Os locais perto da(s) fronteira(s), eram os mais pacatos.
Não convinha levantar ondas, porque entrar e sair, era como estar no quimbo, de cá ou no de lá da "namorada"

Foi uma coisa que impus:
- O preto ia para a "lavra", local onde semeavam a mandioca e umas parcas verduras, além do feijão.
A mulher ficava a arranjar a palhota.

Arranjei uma data de "amigas" que iam assistir ás aulas que era "obrigado" a dar.

Tentei ensinar o que me era possível, mas principalmente A LER e escrever, "mal e porcamente".

Não me arrependo do que fiz e se voltasse, (à força), voltava a repetir tudo.

Eu sei que vou te amar disse...

Daniel mais um enredo que vem enriquecer mais este cantinho! Agora estou curiosa, chegamos ao ponto fulcral da historia...quem e o espião?

Daniel disse...

Brandys

As tuas boas palavras são para agradecer.
Não pensei nisso, já que falas!... Possivelmente também!
Poesia? Publiquei alguma, tenho tentando mais, com o objectivo de adestrar a poética das palavras, o que interessa muito na prosa.
Trarei aqui, vale?
Beijo
Daniel

Daniel disse...

xistosa

Acabei por, espalhar-me e acabei por comentar este comentário.
É isso mesmo!... Um verdadeiro homem, não se arrepende!...Aprende.
Daniel

Daniel disse...

Naela

Se, há enredos na verdade histórica talvez, mas vividos e anotados na hora.
Espiões houve bastantes.
O chefe (branco), de uma fazenda (onde estive) era-o, coisa que não consegui encontrar a verdade expressa, pelo que o caso foi omitido.

Daniel

Anónimo disse...

Voce escreve muito bem! =)

Cristiana Fonseca disse...

Olá , muito obrigada pelas tuas palavras la no meu blog, seus comentarios sempre o encantam.
E minhas congratulações a mais este belo texto.
Beijos,
Cris

o¤° SORRISO °¤o disse...

Oi Daniel. Valeu pelas suas visitas, sempre encantadoras.
E a saga do Onofre continua através de seu belo texto.

Beijos mil! :-)

Daniel disse...

Nadja

tive prazer e deixo o meu sincero obrigado.

Daniel

Daniel disse...

Cris

Sempre a partilha!
Senceramente fico obrigado.
Beijos
Daniel

Daniel disse...

sorriso

Sempre a sorrir o rapaz Onofre foi cumprindo e anotando, no seu diário, sempre com o fito de publicar. Como "em casa de ferreiro espeto de pau", só agora chegou espaço temporal para o fazer.
Obrigado, beijos
Daniel

rosa dourada/ondina azul disse...

Que belas fotos devem ter tirado naquele tempo que por lá estiveram .

Cinema, quando era possível, também uma forma de passar o tempo :)

Bom feriado
Beijo,

Daniel disse...

Rosa

De facto, há fotos interessantes, apenas a preto. Não haviam chegado a cores. Cerca de 50 estão em cópias em editoras, acopladas as texto, com vista de aceitação para livro.
O Cinema assistiu-se na cidade depois de 13 meses no mato, em que só se assistiu a uma sessão, que a respectiva componente de campanh de guerra levou lá. O écran era uma tela branca dependurada num mastro, passou um filme portugês, que está mencionado num dos capítulos.
Beijos, Daniel