O PARAÍSO DE BENFICA
Depois de João Moisés encontrar as condições económicas de entrar num clube mais avançado, o dos casados, que desde miúdo pensava ser o paraíso do Planeta Terra, o supremo eterno do mundo, visto que era o início de uma vida comum a dois, que mais tarde seria alargada e a dar-se uma separação só por interferência da irmã morte poderia acontecer.
Para o cumprimento perante Deus e os homens, a famosa igreja das Mercês sob o ministério do coadjutor do velho pároco, o Padre Marques Soares, deu-se a cerimónia religiosa do enlace.
Depois do longo, grandioso e tido como inevitável “buffet”, o casal viu-se, finalmente, a sós pela primeira vez.
Depois do transcendente acontecimento, a morada passou a ser nova, não muito longe do saudoso Café Paraíso de Benfica, talvez o mais antigo do Bairro e o último, do género, da Lisboa antiga.
Era bom presságio, para início de uma nova vida, tanto mais que se estava ali a desenvolver uma outra Lisboa, com um grande aglomerado de casas, tendo como base a Avenida do Uruguai e a então Estrada Poço do Chão, incluindo o que se veio depois a baptizar por Praça Artur Portela.
Acontece que a capital desse tempo, com a sua intrínseca grandeza, era em tudo uma sombra, a ponto de mesmo um faustoso lance matrimonial, não dar direito a mais de oito dias de férias, findas as quais João Moisés compareceu, obviamente, ao dever do serviço, não sem antes lhe vir à lembrança os tempos do Bairro da Graça, Aquela histórica casa onde deixou de viver e conviver, sobretudo do aparelho de telefone que a equipava.
Era composto por um mealheiro onde entrando, sob pressão, uma daquelas moedas de alpaca do valor de cinquenta centavos funcionava.
O sistema tinha a ver com a movimentação da casa e porque a economia do tempo obrigava a que fosse garantido o pagamento por quem utilizasse o serviço. No entanto em Benfica dispunha do seu telefone sem o incómodo do dispositivo.
Acabaram as caminhadas da Graça até ao posto de trabalho. Dali em diante, o paraíso de Benfica tornou-se, à ida para o escritório, ponto de partida para os muitos carros de tracção eléctrica que então serviam a freguesia, em acelerado povoamento. Como se isso não bastasse, relativamente perto desenvolvia-se a Brandoa na clandestinidade, cujos habitantes também ficavam sujeitos aquela estação para alancar o trabalho.
A azáfama de apanhar transportes, por toda a gente, começava logo pelas sete da manhã e as ruas que desembocavam próximo da igreja, onde quase na frente existia a estação e se iniciava a partida transformam-se, em verdadeiros formigueiros humanos.
Não podia dizer-se que faltavam meios, o que havia era já muita gente dependente deles, que dispunham apenas de uma via, a Estrada de Benfica, que começava na Avenida Duque D’Ávila, junto ao Governo Militar de Lisboa, acabando nas Portas, onde se inicia a Avenida Elias Garcia, já fora da cidade.
Começava então de manhã a verdadeira aventura de chegar ao trabalho, à hora nona ou antes, cuja abertura também fazia parte das obrigações de João Moisés.
Logo no primeiro Inverno, por sinal rigoroso, naturalmente por imperativos camarários, ou outros, uma vala foi aberta por toda a Estrada, então era ver carros eléctricos a preencher toda a via, em vários quilómetros de distância até à estação do metropolitano em Sete Rios, onde muitos mudavam de rota, para a baixa da cidade, por meio daquele rápido meio de transporte.
Os transportes eléctricos, uns iam da estação de Benfica à Praça do Chile, para outros só terminava a linha na Praça Duque da Terceira, vulgo Cais do Sodré. Era neste últimos que, diariamente viajava João Moisés, verdadeira aventura!
Embarcava na origem até ao apeadeiro do Príncipe Real, depois descia a pé toda a Rua do Século, onde na última, imediatamente à Esquerda, iniciava o seu dia laboral.
Recordando, em síntese, a comprida e aventurosa viagem diária num daqueles carros movidos a electricidade, por carris. de ferro, convém não deixar em claro a tentativa de reconstituição da sua rota:
- Partia da estação, seguia em linha recta, com volta por uma quinta abandonada, onde se encontra o Centro Comercial Fonte Nova, até Sete Rios, aí fazia a curva á direita, continuando pela Estrada de Benfica, passava ao Instituto de Oncologia em Palhavã, Praça de Espanha, junto aos jardins da Gulbenkian, atravessava a Duque D’Ávila e andava à volta de três partes do edifício do Quartel do Governo Militar de Lisboa, voltando à mesma Avenida, que percorria até Campolide, depois rumava à esquerda, para fazer a Rua descendente até atravessar a Avenida Joaquim António de Águia, dando às Amoreiras, que descia até ao Largo do Rato, onde passava até voltar à Rua da Escola Politécnica.
Finalmente a paragem, a que muito boa gente chamava o Jardim da Patriarcal.
Depois com aparente calma, descia a pé, toda a Rua do Século.
Há!... O trabalho já estava também a desencantar João Moisés, porque entretanto, como tantas visitas, o Sertório acabou por reentrar com a aquiescência dele próprio, visto o rapaz já ter sentido na pele, a situação de despedido do trabalho, depois porque não deixaria de ser bom rapaz e viria a ser bom ajudante. Verificado depois o mau carácter do novo ajudante, além de lhe falar um mínimo de conhecimentos, que deveria ter adquirido durante o tempo que ali trabalhara. Era só jeitoso a criar outras formas de poder esgueirar-se ao serviço que lhe competia.
Apesar de já ter sido despedido compulsivamente, por interferência do Moura Jorge, depressa se conotou com este, contando com a insensata colaboração do cobrador, elemento com muito jeito para intriga.
Tudo programado, baseado no visível derriço da Inglesa, João Moisés depressa se apercebera ser o visado. Com base em denúncias forjadas. Da amizade do chefe de alguns anos, este passara também a tratar com ele apenas os indispensáveis assuntos de trabalho.
Naturalmente, também a mulher da Grã-Bretanha lhe dera a volta à cabeça, pelo que com um despedimento, com o valor da consequente indemnização viria a calhar.
Assim aconteceu! Numa manhã, sem nada fazer prever uma tal iminência, o Moura Jorge deu em querer tirar esforço, dento do próprio escritório sob alguns olhares atónitos, do próprio João Moisés o que este, evidentemente, não consentiu. Dera-se quase simultaneamente a entrada do Guarda-Livros e sem qualquer consulta, sucedeu-se de imediato e desejado despedimento.
Podia ser considerado por justa causa, mas tudo ficou logo facilitado, foi atribuído em jeito de prémio, pelo acto de pura mesquinhez, uma quantia de vente e três mil escudos compensatórios, que à época podia considerar-se quantia elevada.
O gosto pelo trabalho, da parte de João Moisés não se alterou, embora lhe fosse logo atribuída a chefia, com a mesma remuneração, factor de evidente equação, mas de nenhum significado.
Em todo o processo o novo chefe, nunca foi ouvido e considerou ter havido muito de trama, seguida de injustiça. A haver despedimentos, pelo menos três elementos deviam ter entrada no pacote: O Moura Jorge, o cobrador e o novo ajudante.
Alguém não deixou de considerar esses factores, nunca se conformando com eles, além de ter continuado a contar com o reconhecimento inequívoco do gerente principal, de imediato iniciou a tarefa de tentar mudar de entidade patronal, deixar aquele edifício, onde em tempos muito recuados, esteve implantada a Capela das Mercês, e que o seu proprietário, tão mal, o ia transformando aos poucos, sem qualquer conceito de ordem estética.
Teria sido a mesma que dera nome aquele grande arruamento do famoso Bairro Alto, designado por Travessa das Mercês.
Daniel Costa – in JORNAL DA AMADORA
domingo, 3 de agosto de 2008
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35 comentários:
Acompanhar estas viagens, passo a passo, é reviver Lisboa antiga.
Nos dias de hoje tudo está tão diferente!
Melhor? Pior? Não sei. Diferente...
Nos anos 50 vivi, algum tempo, muito jovem ainda, próximo da Av.Infante Santo, à Estrela.
Foi muito bom ler esta óptima descrição, e recordar.
Uma boa semana.
Beijinhos
Mariazita
Um passeio lindo pela tua mão, ou melhor direi pela tua pena.
Quem hoje passa nem liga nem pensa que outra Lisboa esteve "atrás" desta que agora se compra.
Obrigado por este calcorrear de ruas e algumas memórias.
Um beijo Daniel
ó daniel e vim de novo no seguimento de uma lisboa antiga que me corre nas veias, nos olhos, na íris que nunca a conheceu senão pelas tuas palavras e que boas palavras, que largas descrições em pormenores fantásticos e cheios de recordações e lembranças.
eu limito-me a escrever micro contos e invejo-te a criatividade para tanto.
também o senhor daniel já é jornalista =)
um beijo terno
deste
mar.
E la conseguistes de novo...por-me atenta ao monitor do pc...embebedando-me com tuas palavras eloquentes.
Adorei..
Beijao
Reviver a antiga Lisboa :)
*
olhai senhores
esta lisboa doutras eras,
,
abraço,
,
*
Daniel mais uma continução da interessante historia de Joao Moises no papel de casado...passear por Lisboa visto pelos teus olhos é viver uma época e costumes que ficaram na historia!
Beijo terno
querido, nao li o teu post! mas me apaixonei pelo poema da maldade!
Eu te explico; estou sempre muito ocupada, mas adoro deixar meu blog atualizado, por isso prefiro fazer posts curtos e ler os curtos também, por isso li o poema, e ela é super interessante!
Espero seu retorna no meu cantinho,
Liz
Mariazita
Cheguei a Lisboa em 64. Há dias passei perto, vi tudo tal qual. Lisboa está maior, mais moderna, mas cresceu noutros pontos, como o sítio do Parque das Nações, por exemplo. A avenida Infante Santo, era moderna, nos anos 60. Agora nem por isso.
Retribuo desejos de boa semana e beijinhos.
Daniel
Oi Daniel,
Hoje estou psassando correndo...mas volto com calma pra te ler...
Um beijo
ps:obrigado pleas suas palavras tão gentis em meu cantinho, ☺
Gasolina
A Liboa antiga continua, a vida mais moderna, mas muita gente se tem deslocado, desde os anos
80, para outras zonas novas, até para a periferia.
Memórias apenas, não nostalgia.
Um beijo
Daniel
Mar
Essa Lisboa antiga, existe a paisagem física, mas o tipo de trabalho foi completamente ultrapassado. Existiu e procurarei deixar testemunho, tanto mais que já acabei. Estou a tratar de lhe fazer uma revisão, para propor a sua edição em livro.
A minha área de jornalismo é mais especializada em filatelia. O que terá a ver é o gosto por escrever.
Terno beijo também,
Daniel
Anja Rakas
Sou assim descomplicado, falo e logo existo!...
Gostaria de ir mais além, mas não sei!...
Beijo
Daniel
Vanessa
Mesmo reviver, passar pelo filme.
Daniel
De Lisboa vivi na Pontinha como já tinha dito, e de resto sai de lá com quatro anos e pouco, depois só de visita ou de passagem quando regressavamos do Ultrmar para gozar a graciosa... e memso agora poucas veze slá vou e já me aventurei a ir ter com as amigas de combóio e nem me perdi, apanhei táxi depois e lá fui ter com elas e pelas 18 regressei..foi um cadinho bem passado..qualquer dia repito a aventura!...
Ji de mim...
oh!Daniel, é tão engraçado estar a ler mais este capítulo e acompanhar "par e passo" João Moisés, os lugares...tão estraordinariamente descritos por Si, não sou de Lisboa, mas conheço-os... é fantástico.
Obrigada por este bocadinho.
boa semana
um sorriso :)
ah!não se "assuste" com o post!rsrs
Esta minha visita de hoje destina-se a fazer um convite:
A partir do dia 5 de Agosto tenho o prazer de colaborar com o
SEMPRE JOVENS
Espero e agradeço, desde já, a vossa visita e comentário.
Voltarei tão breve quanto possível.
Beijinhos
Mariazita
Poetoeusou
Verdade, minha bonita Lisboa de ontem!...
Abraço
Daniel
Naela
Obrigado, passa sempre, gosto de ver-te por cá, a ver a minha aventura de vida.
Beijo
Daniel
Adorei o passeio... traz lembrancas...
Bjs meus
adoro que sejas o meu cicerone nestas viagens!
beijos
Belo passeio!
Gosto demais disso!
Hsuahsuashuah
Beijo!
=]
Liz
Gostei que passasses, gosto de pessoas independentes, logo estás sempre à vontade.
Em retribuição, desejo boa semana.
Daniel
Bandys
Obrigado, estás sempre à vontade comigo!...
Um beijo
Daniel
Laura
A Pontinha é próxima, estiveste no tempo em que uma estrada, passava aqui ia dar lá, era a Estrada Poço do Cháo, agora é a Rua República da Bolivia e dá só até onde chega a Avenida do Uruguai. O resto entrou tudo na nova urbanização.
Vir a Lisboa e voltar logo, é pouco. O mesmo aconteceu com a minha última ida a Braga; cheguei, almocei e regressei.
Não vi nada do que conheço e até é bastante.
Beijinho
Daniel
Ah nino daniel, tão pá próxima vez que venhas cá, avisas a mim claro...e vamos abraçar-nos...dá sempre tempo... se vieste de comboio moro a dez minutos a pé da estação e das carreiras também é perto de carro nem 5 minutos...faz favor..e além disso eu so fui fazer uma surpresa à pascoalita nos anos dela e fui ter ao trabalho dela e ela imaginava-me à pesca no Algarve de tão bem que a enganei...ji a ti moço daniel...
Mariam
Se achas engraçado, fico encantado, já que o objectivo é também o de partilhar.
A saga continuará, volta sempre.
Resto de boa semana.
Beijinho
Daniel
Mariazita
Visitei e gostei, passo a ter atenção ao bom trabalho.
Beijinho
Daniel
Diva
És da casa, passa sempre, que te aprouver!
Bjs.
Daniel
Carlas
Cá estarei para conduzir-te neste passeio de aventura de trabalho em Lisboa.
Beijos
Daniel
Camila
Como tudo para mim é aventura de vida, tive muito gosto!
Beijo
Damiel
Laura
Daquela vez(foi imediatamente antes de...) fui de comboio, precisava de descansar e foi uma maneira de aproveitar. Era convidado e fiz reportagem, que publiquei em Madrid.
Também quando passares por Lisboa podes apitar.
Beijos
Daniel
Mal conheço Lisboa...mas há nomes que me enchem o coração de tantas vezes os ouvir falar. Parabéns. Gostei. Bjitos
Gosto bastante do João Moisés :)*
Imagino a riqueza da sua vivência. Ainda mal o conheço, mas já deu para perceber como o moço é inteligente e ambicioso, hen?
Vou continuar a descobri-lo, ao mesmo tempo que vou revendo os vários locais da capital :)*
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