terça-feira, 29 de julho de 2008

CONTO DE FILATELIA

O VELHO FILATELISTA


Sendo ainda adolescente o destino permitiu que fosse trabalhar para uma freguesia mais a norte do distrito de Lisboa, onde o vinho era uma das riquezas do sítio.
O trabalho era variado, relacionado com a produção vinícola, apesar da juventude, já me considerava um mestre nessas tarefas, no entanto mais um ajudante dos trabalhos do campo, como muitos outros, que havia na zona.
Na localidade, que se chama Miragaia, abundava a uva, da qual se produzia muito vinho tinto carrascão e em época de recessão económica, o lugar acolhia toda a classe de trabalhadores.
Então dizia-se, que ali se secava muito bagaço (casca da uva depois de espremida) e era por isso que se vivia bem.
Portanto Miragaia, no norte do Distrito de Lisboa, era uma localidade onde mesmo os pequenos proprietários, tinham o seu moço. De modo que ter o seu criado – normalmente procedente de fora – significava pertencer a outra classe de poder económico.
Havia criados de servir de distintas categorias, dependendo do nível moral ou riqueza dos amos.
Este criado que vos fala, ao ter como patrão um dos mais recomendáveis era considerado um servente de luxo, era assim que o tratava a patroa, dona Eduarda. Notava-se em ocasiões que o mandava fazer certas tarefas, recomendando:
“A pessoa com que tens de falar é muito entendida!...”
Afinal, o cargo pressupunha algum prestígio a quem o exercia e consequentemente, a quem executava os serviços inerentes.
Ao cair da noite, diariamente, quando haviam acabado os afazeres, ia a uma espécie de café, um local que vendia tudo e durante o serão era ponto de encontro aberto a todos. Ali comprovava-se que democracia, não era apenas mais uma palavra, era a realidade dessa casa.
Convém assinalar que estávamos nos anos cinquenta do século XX.
Aquele local não era, pois, uma taberna qualquer, porque se podiam encontrar, à disposição a maioria dos periódicos, que se publicavam. Eram eles que ali me levavam para ler e andar informado, já faziam parte dos tempos livres.
Naquela época, parecia um trabalhador do campo dotado de grande sensibilidade e talvez devido à singular postura que sempre adoptava, durante essas leituras, numa dessas noites fui abordado pelo senhor Onofre.
Este, desde então, passou a ser grande amigo.
Vendo que me interessava um pouco por selos usados, o que lhe mereceu atenção especial, visto dispor de uma boa colecção de Portugal.
As estampilhas postais fascinavam-me e pensava que, com elas podia organizar uma colecção de muito interesse, mas tenho de reconhecer, que sequer conhecia bem o termo filatelia e desconhecia existirem associações próprias de amigos dos selos.
A partir dessa nova amizade e da gente que vim a conhecer, graças a esse factor, converti-me em filatelista amador, sendo que o velho Onofre foi responsável, de me dedicar mais a esse maravilhoso mundo.
Onofre veio a perder a sua esposa, devido a enfermidade, mas tinha uma filha chamada Ercília, mais velha que eu, mas por quem tinha já uma grande estima, talvez mais uma espécie de amor. Seu pai não me desalentava, pelo contrário.
Daí passei a visitá-los amiúde e era sempre bem recebido. Cresceu a amizade, com a miúda, mas jamais passaria disso.
Depois de ter trabalhado em Miragaia, os regulares encontros passaram a pertencer ao passado, ficou a amizade e a recordação do velho Onofre e essas terras que o tempo acabou imortalizando, pois ali estava o berço dos dinoussários Lourinhasaurus, que pisaram muito essas terras, há milhões de anos atrás.
E o próprio Lourinhausarus está imortalizado pela filatelia, em etiquetas AMIEL.
De tempos a tempos fui visitando aquela família, e quando fui mobilizado para o Ultramar, fui despedir-me. Sempre revia a colecção, o orgulho desse coleccionador. Diria que considerava os álbuns como um símbolo de distinção, dado que era homem do campo.
Herdou muito desse património de um tio, que pertenceu ao exército e desenvolveu a colecção, tornando-a mais atractiva.
De facto, seria a única pessoa a quem a mostrava orgulhosamente, comentando o seu tesouro, formado por toda a série da rainha D. Maria II, os selos do Rei D. Pedro da primeira série de Santo António de Lisboa e muitos outros, tudo novo e impecável.
Passaram uns anos e um dia visitei o velho Onofre. Com grande prazer, esperava o ritual de voltar a contemplar os álbuns. Então pude ver umas fotocópias, haviam substituído os selos, bem colocados como foram os originais.
Ercília olhou-me, com olhos que não sorriam como de costume, mostravam-se inertes e tristes. O meu estado de ânimo também estava em baixo, pois suspeitara de algo, mais tarde compreendi melhor o que ocorrera.
A proverbial placidez manteve-se, habitual nessas situações. Vi então que o velho Onofre havia perdido o sentido da vista, quase por completo e compreendi a via das fotocópias, para representarem os selos, como das peças originais se tratasse.
No final, sendo boa anfitriã, Ercília acompanhou-me à saída e foi quando pude saber o que havia ocorrido.
Devido a doença prolongada, o meu amigo Onofre a perder a vista e ao tratá-la, iam-se esvaindo os recursos financeiros, mesmo bem administrados pela filha escasseavam, pelo que foi preciso recorrer a experts em filatelia, para equilibrar a economia e permitir que o velho pai, vivesse ao últimos anos da vida de forma digna.

Daniel Costa

32 comentários:

Eu sei que vou te amar disse...

Daniel a tua experiencia e rica em factos e conhecimentos!
A vida deu-te a oportunidade de aprofundar em varias áreas e conhecer pessoas que te ajudaram no percurso mágico da sabedoria!
Um beijo muito terno

Mariana disse...

Olá, interessante tua história de vida.
Daniel, nos teus comentários, vc tem me chamado de Marta...rs...
Lindo nome mas prefiro o meu, Mariana.
Um beijo e bons dias

Sombra de Anja disse...

Uma história de amor...
Porque sabes bem contá-las??
Aaahh....a raiva que sinto é não poder ouvi-las directo de ti.
Lindo...simplesmente lindo.

Beijos

poetaeusou . . . disse...

*
rendo-me,
a tão bela prosa,
,
abraço
,
*

Carla disse...

...as palavras que tu nos ofereces têm vida e magia...
gosto muito de te ler
beijos

Fá menor disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
jo ra tone disse...

Mais uns passos de vida
Gostei de ler

Anónimo disse...

Oi Daniel, acabei de absorver a tua prosa que muito emocionou-se.Uma linda história e com certeza uma agradável lembrança da tua infância.Veja você como está escrito... " Plantas e colherás os frutos..." E assim é a vida, tudo que plantamos tem o seu retorno, nada foi perdido meu amigo, porque tesouros foram plantados no teu coração.A sabedoria, amizade e com certeza a maior de todas as virtudes O AMOR! Meu abraço terno!

Daniel disse...

Naela

Sabes uma coisa? Falo realmente, a partir de experiências vividas. Como desejo partilhar se os amigos gostam tenho de agradecer, mas sou capaz mais do que ser eu próprio.
Agradecendo as boas palavas, também deixo um beijo terno.
Daniel

Daniel disse...

Mariana

Espero que me desculpes a deslexia evidenciada, creio que foi em cadeia.
Olha que só os nomes são verdadeiros, o resto é ficção, com alguna factos reais.
Espero não trocar o bonito nome de Mariana e deixo beijo de boa tade.
Daniel

Daniel disse...

Anja Rakas

É de facto, uma história de amor filial.
Saberia contar de viva voz, possivelmente, sussurada.
A experiência devia resultar interessante.
Beijos
Daniel

Daniel disse...

Poetaeusou

Gostei, será bondade, mas incentiva.
Abraço
Daniel

Daniel disse...

Carla

As tuas palavras é que têm magia, incentivam!...
Beijos
Daniel

Daniel disse...

Jo Ra Tone

E fico abrigado!
Daniel

Daniel disse...

JADY ALVES

Os nomes de facto, são lembranças da adolescença, os poucos factos verdadeiros, em que assenta a ficção são modernos.
O AMOR filial também é facto.
Daniel

sagher disse...

nao deixa de ser curioso, dediquei-me á filatelia durante anos. agora desejo desfazer-me de tudo, mas necessito de um conselheiro será que podias ajudar

Daniel disse...

Sagher

No campo de filatelia, está tudo diferente, mas podes fazer o seguinte: Escreves mitalaia no Goole vais ver lá indicações, no penúltimo post (hoje) Serviço FRANQUIA e tens lá informação de contacto telefónico, podes dizer que é da minha parte.
De resto fico à disposição, para qualquer esclarecimento.
Daniel

Laura disse...

Querido onofre que soube levar-te a um caminho lindo de selos e de outros mundos. Pena que no fim tivesse de sofer sem ver e a filha também. Assim sentia as fotocopias dos selos e pensava que ainda os tinha? era?
Mas é a vida e cada um segue seus caminhos. Pensei que tinhas casado com ela, mas fui lendo e afinal...nem deu! Não estavam destinados!. Ji da laura

RENATA CORDEIRO disse...

Ainda não consigo ler o seu texto inteiro. Tem de ser aos pouquinhos, mas eu volto, viu?
Fiz novo post hj, acho que vc não viu o filme.
Apareça por aqui:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com
não há ponto depois de www
Um beijo,
Renata

mariam [Maria Martins] disse...

gostei muito!
experiências ricas e enriquecedoras... obrigada por partilhar.

boa semana
um sorriso :)

mariam

São disse...

Que tristeza...
Resta a parca consolação de que foi para benefício próprio, não é?
Tudo de bom.

Sombra de Anja disse...

Humm..só o pensamento de tal história contada a viva voz me faz arrepiar os dedos dos pés e enrolar meus caracóis mulatos.

Adoro cá vir..leva-me a terra.

Beijos

vero disse...

Olá Daniel,
gostaria de saber se já recebeu o convite para visualizar o meu blog :)

Beijinhos***

Bandys disse...

Daniel,
Sempre contos e prosas com riquezas de detalhes e fatos.
Amigo, agradeço seus elogios,
Beijos

Daniel disse...

Laura

Donde parti, realmente andei por bons caminhos. De resto o que viste é ficção, embora partindo de dados reais.
As mulheres, não estão muito nos caminhos da filatelia. Os filhos devem ser educados, para a vida e suas escolhas e não para gostos dos pais. No entanto a minha chegou a saber muito de filatelia e a neta, que vai fazer cinco anos, faz questã de fazer selos, tem orgulho de ter em casa do Daniel a sua gaveta com os classificadores, que vai enchendo e dos quais se orgulha. Porém eu ajudo, mas a pedido.
Um beijo
Daniel

Daniel disse...

Renata

Ainda não deu para dar a saltada ao teu post. Depois faço-o com prazer.
Passa quando entenderes, serás sempre bem vinda.
Um Beijo
Daniel

Daniel disse...

São

Julgo entender que interpretaste mal o texto. Trata-se de ficção, repara!...
Daniel

Daniel disse...

Anja Rakas

Gosto de contar histórias ao vivo!...
Ainda bem que gostas, fico satisfeito, adoro partilhar.
Beijos
Daniel

Daniel disse...

Vero

Recebi o convite, aproveito para agradecer.
Já tenho visualizado.
Beijinhos
Daniel

Daniel disse...

Bandys

Afinal eu que agradeço, acho que fazes bela poesia. Gosto e a intenção é sempre a de partilhar.
Beijos
Daniel

xistosa, josé torres disse...

Que trajecto de vida, amigo Daniel.

mas foram experiências e vivências que o enriqueceram.

Ter que vender os "anéis" para tratar da saúde, foi, é e será sempre um cancro no nosso país.
Quem não tem dinheiro : MORRE!

Talvez até fosse uma dádiva a perda da visão ... um coleccionador não se desfaz das coisas com facilidade, dai as fotocópias do engano.

Até sentimos que o ar custa a passar nos "canais"

Vou de férias.
Talvez regresse lá para 22.
Vou levar o portátil.
talvez apareça, pois o vício é grande.

(Ah! Só uma coisa, apesar daqueles copos todos que aparento beber, resumem-se a 20 garrafões que compro todos os anos.
2 para o meu genro
1 para o pai dele
1 para 1 primo meu e
1 para um vizinho, que me dá um de verde branco.
Ficam 15.
Costumo fazer umas petiscadas com 4 ou 5 amigos.
Pouco sobra para mim ...
raramente bebo e no Verão, quando como saladas, não consigo beber vinho.
O vinagre da salada não me deixa saborear o vinho ...
Não necessito de dar explicações ... até podia andar sempre com a piela, mas não. Pouco bebo.)

Daniel disse...

José Torres

Realmente, trabalhei um pouco. Só depois de fazer 30 anos (2 vezes) é que reparei. Curiosamente, acabei por não fazer nada que não gostasse. Artes gráficas e filatelia foram mundos de aprendizagem, que me encantaram.
Devo ter nascido viciado nascido viciado em trabalho, mas acho que não era mau!...
Ói Férias, são férias adquiri agora um portátil, uma sobrinha disse-me que tem um, extra, à minha espera!
Possilvelmente, fora não haverá PC!
Bebia Wiskes, bagaceiras, cervejas, etc. Agora apenas vinho, mas se não é muito bom, rejeito! Só posso beber no fim da refeição, por causa de não contundirem, com comprimidos.
Nem sabes, como é bom, acompanhar um cozido com 7up! "Nobless oblige"!
Fizeste-me rir: quando acabava o vinagre, era muito miúdo e minha mãe mandava-me ir a casa do meu avô buscar nova garrava e levei anos a ouvir a avó dizer: "O teu avô, já tem de acrescentar o vinagre - então o vinagre acrescenta-se? Cogitava!
Daniel