segunda-feira, 7 de julho de 2008

LISBOA CAFÉ - 2

SANTO ANTÓNIO DE LISBOA


O grande Santo nascido em Lisboa, tão venerado na cidade que realiza em sua honra marchas populares, na noite de doze para treze de Junho, em grande apoteose, não podia passar despercebido.
João Moisés, apesar de se achar evoluído, por ter começado a trabalhar desde muito novo, gostava deveras do elemento feminino.
Estava instalado numa morada que se prestava aos mais arrojados pensamentos, ainda que vindos daí, mesmo assuntos de carácter religioso, eram de interesse para vasculhar, como vai ficar demonstrado.
Acontecia todos os dias passar algum tempo na sala dedicada ao atelier da anfitriã, onde trabalhavam várias costureiras, que já eram suas amigas, uma delas de certa idade, vivia ainda com o pai, sacristão na capela de Santo António, na Rua do Vale do Santo do mesmo nome.
Em conversa com a senhora, que também ajudava nos arranjos da igreja, veio a revelação surpreendente de que a mesma era a genuína e situava-se no exacto local onde, de facto nasceu o Santo casamenteiro.
A constatação era interessante para investigar, porque era dado como consumado o Taumaturgo lisboeta ter nascido junto à Sé, onde se encontra o grande templo que lhe é dedicado.
O assunto levou João Moisés a muitas pesquisas e afinal nenhuma dava a zona do Vale de Santo António, como o sítio do seu nascimento, no entanto nunca a sua mente deixou de achar verosimilhança no caso, muito pensou no que poderia ser uma hipotética verdade, que não é descabido fomentar e até propor, para uma moderna consideração.
Começou por ser imaginar nos longínquos anos do nascimento do Santo, em que o Vale poderia ser considerado perto da Sé, em que o caminho, de certa maneira curto, era feito a pé.
Pensando bem naqueles tempos, em que por ali tudo eram campos, o Convento de S. Vicente de Fora, onde fizera estudos, que como sempre se situava a meio do percurso, não custava admitir essa versão, que os vizinhos capela do Santo, no Vale tinham arreigada, tanto assim que se estava perante um templo minúsculo e menos pomposo do que o vizinho da Sé e de maior antiguidade, criado antes e também para assinalar o lugar do nascimento do que foi baptizado com o nome de Fernando e mais tarde a pregar em Itália, ao mesmo tempo que veio a Lisboa depor, em tribunal, pelo pai.
Tão bem terá feito a defesa que conseguiu provar a inocência do progenitor, livrando-o de uma condenação certa à morte. O caso faz parte da história da vida do pregador que jaz em Pádua, porque se fosse tomada como verdadeira, estava-se na presença de um invulgar caso do dom da ubiquidade.
A conjectura, não passará disso, mesmo tendo em conta a tradição local e o assunto analisado por alguém que se estava a dedicar ao estudo de todas as coisas, mesmo as vulgares a parecerem comuns, porque ninguém lhes dava importância, mas tinham por onde pegar.
Voltar a estar acordado, na grande mansão da Graça, era interessante porque ali, a par dos serões de cartomancia, muito haveria a contar, como o caso de um casamento e outro de uma espécie de mancebia.
Tratava-se de duas irmãs, uma mulher interessante, mas não bonita, casou com um rapaz a dever pouco à preciosidade de ter inteligência, a outra extraordinariamente bela, a tal ponto que o amante, homem de fortuna, acabou por gastá-la toda à conta daquele enlevo.
Apesar de não haver mulher que valha tal, o certo é que também muita gente daquele sexo contribuiu, para o rápido esbanjamento.
No fundo João Moisés, cuidando do seu futuro, divertia-se naquela verdadeira vida e lá descia, pelo menos, duas vezes ao dia para trabalhar e estudar, a íngreme Calçada do Monte, que leva ao Largo da Graça, mas achava-se fadado para observar os minúsculos actos que a própria labuta de relações públicas traziam à superfície.
Foi assim que, ainda na Rua das Portas de Santo Antão, ao tempo trabalhava numa dependência predial, por debaixo da antiga sede do Sport Lisboa e Benfica, num daqueles Bares de ginjinha, que aliás era de própria designação, a Ginjinha Popular. Não obstante, quando chegava a canícula funcionava e para isso estava preparado, o serviço de venda de capilés, salsaparrilhas, groselhas, bem como limonadas, tudo dissolvido em água com soda, em copos bojudos, de vidro muito grosso.
Era nesse tempo que sempre aparecia um dos porteiros do Clube, homem forte e de grande vozeirão, pedia invariavelmente um capilé à Benfica, numa repetição diária, que o tornava engraçado, enquanto fazia propaganda às virtualidades que achava do Clube seu patrão.
Passava por ali muita classe de gente, um ensaio feito e logo aprendido, é que não se podia guardar fosse o que fosse de qualquer forasteiro, dos muitos que vindos de fora, que aportavam ao local.
Era o tempo da Guerra Colonial, pelo que a senhora dona Censura se mostrava tenebrosa, até mesmo nesses aspectos.
Aquele tipo de policia, sem se dar a perceber, estava sempre presente pelo que nunca se sabia quem era quem, num sítio onde passava todos os tipos de gente.
Já tinham acontecido factos inacreditáveis, no aspecto, embora não se passando mais do que serem levados a interrogatório alguns clientes, que apenas ficavam com ficha na PIDE.
Depois, o João Moisés teve ocasião de observar uma tentativa de jogo da vermelhinha, era uma época em que uma nota de cem escudos se tornava quantia interessante, para aquele verdadeiro conto do vigário.
Passou assim: Um par de homens entrou e solicitou ser servido com ginjinhas de cinquenta centavos. A tentativa de pagamento foi feita com uma cédula de cem, depois de estar o troco pronto, um dos comparsas lá arranjou a moeda de escudo, para a liquidação, então preparava-se para ficar com a nota primitiva e o respectivo troco.
Deu-se de imediato e intuitivamente a descoberta da tentativa de logro, sendo abortada a bem congeminada vigarice.
Desde que abraçara a vida de Lisboa e como só se entendia bem na cidade, onde lhe agradava passar despercebido, tinha terminado uma relação amorosa que ainda possuía na zona de origem.
O trabalho não era encorajador para novos intentos, porque era apenas preenchido pelo género masculino, mas conseguiu a sua primeira namorada, que talvez por imaturidade citadina depressa o trocou. Convém verificar que como não havia chegado a revolução sexual, nem mais ou menos, a abordagem era mais complicada.
Na escola arranjou uma namorada, nada devia a uma mente bem esclarecida, como conviria e depressa teve de ser esquecida, nem o nome Emília dizia algo, já que João Moisés era exigente.
A seguir, foi mesmo ao balcão que catrapiscou uma nova miúda, acompanhada por familiares, a quem veio a conquistar algum tempo depois, em separado, era a Joana e tudo corria bem. Parece que se haviam encontrada duas almas gémeas, mas ainda não seria o fim dos derriços, apesar de o namoro parecer reunir condições para frutificar.
Refira-se que, até então tudo não passou de entendimentos entre jovens, à moda daqueles tempos, porque actualmente, namoro equivale de imediato a uma vida a dois, sendo que os processos de agora, se tirar fora os excessos são mais atraentes, evitando muitos sofrimentos, afinal escusados.
Nessa época, sempre se apresentavam muitas noivas vestidas de branco, que escondiam o seu desfloramento das vistas do público, com um manto constituído também pelo tradicional ramo de flores de laranjeira, o sinal certo que evidenciava a consumação do matrimónio apenas na noite de núpcias, só depois da indispensável bênção divina.

Daniel Costa – in JORNAL DA AMADORA

44 comentários:

RENATA CORDEIRO disse...

Oi, Daniel, cada vez mais presente no meu Blog. Acordei bem e fiz uma resenha sobre um filme que está em cartaz em São Paulo, mas cujo DVD importei porque não posso sair. O título em português é A Outra. É sobre o triângulo "amoroso" entre Henrique VIII, Ana Bolena e Maria Bolena,a irmã de Ana, cuja existência eu ignorava até ver o filme.
Apareça por aqui:
wwwrenatacordeiro.blogspot.com
não há ponto depois de www
Um beijo,
Renata

poetaeusou . . . disse...

*
identifiquei-me com o post . . .
,
sou do tempo em que se chamava
rua eugénio santos e apanhava
o barco do café paladium,(bilhar),
(invadido de gabardinas claras...)
nos restauradores para a secretaria
do benfica, para ouvir o carlos
dos jornais, ardina, na vespera
do benfica-real madrid, final
dos campeões europeus - 5-3 =
ainda me lembro:
,
eu não sei se quadra bem,
ocasião soberana,
centro largo de cavem,
primeiro golo de santana,
,
foi o eusébio,
respondendo a puskas,
,
abraço
,
*

xistosa, josé torres disse...

As dificuldades para dar uma queca.
parece que a natureza não nasceu e fez-nos para isso mesmo.
Para a perpetuação da espécie, era bom uma ginjinha, um licor de natal ... e outras coisas que o sabor e paladar perderam, com as exig~encias da vida moderna.
Não sei se o Sto. António bebeu do mesmo e resolveu fugir dos pequenos "pecados", que mesmo todos juntos , não fariam um ...
Sou do Porto, mas ainda tenho um velho "Eduardinho", uma "Ginja" das antigas e um licor de Natal. Por isto tudo fugiu o Sto António ... para não pecar ...
Será que há santos?
O que é um santo?
São de carne e osso?
Onde os encontrar?
Chega ...

Chinha disse...

Realmente ler-te leva-me a uma envolvência fasinante.

Sinto-me até transportada à tua descrição em pormenor.

Sempre que posso passo por aqui, pois ler um bom texto, uma boa prosa é dignificante.

Boa semana
Um beijo

SAM disse...

Olá amigo Daniel!

Cada vez mais interessantes seus textos. Graças a eles vou me ilustrando, conhecendo fatos o que me agrada muito.

Grande beijo! Ótima e proveitosa semana!

Sombra de Anja disse...

Quecas...sexo...fazer amor...pirolitos...cambalhotas...
"Nessa época, sempre se apresentavam muitas noivas vestidas de branco, que escondiam o seu desfloramento das vistas do público, com um manto constituído também pelo tradicional ramo de flores de laranjeira, o sinal certo que evidenciava a consumação do matrimónio apenas na noite de núpcias, só depois da indispensável bênção divina." - Adorei este trecho...um dia acreditei em fadas e finais felizes...hoje...acredito simplesmente na Vida.

Bjs angelicais

Paula Raposo disse...

Obrigada pelas tuas visitas e palavras de carinho!! Beijos.

Ly disse...

Um sussurro...obrigado pela visita.

Camila disse...

"consumação do matrimónio apenas na noite de núpcias, só depois da indispensável bênção divina"
Isso deveria ser regra constante!
Huhuhuhu
=)

Marta Vinhais disse...

Um texto elucidativo das convenções de uma época...
Bastante interessante - o retrato da sociedade tão diferente da de agora...
Escolhi novamente Neruda; se quiseres passar por lá....
Beijos e abraços
Marta

Carla disse...

viajo no espaço e no tempo com a tua leitura
beijos

f@ disse...

Um capilé à Benfica para o S'António...
Gostei mto do texto ...
obridado pela visita às nuvens
bj

Eu sei que vou te amar disse...

Daniel mais um texto que retrata uma epoca fascinante!
Alias ler-te leva-nos a descobrir momentos, cheiros e lugares deslumbrantes tal a tua maravilhosa descrição!
Beijo doce

Cherry disse...

Obrigada.

Ivete disse...

Oi Daniel,
Vim agradecer sua visita e dizer que fiquei maravilhada com seu cantinho, parabéns.
bjsssssss

Vanuza Pantaleão disse...

Boa tarde, Daniel! Gosto desse "falar lusitano", faz-me lembrar de Eça, Camilo, Pessoa...um abraço dos trópicos!

mariam [Maria Martins] disse...

espectacular ...gostei de ler (entrei no "filme")

bem...bem... este mimo! "mas a Apesar de não haver mulher que valha tal, o certo é que também muita gente daquele sexo contribuiu, para o rápido esbanjamento" ... LOL

boa semana
um sorriso :)

PS. Obrigada!

Bandys disse...

Daniel,

Sempre bom ler voce. E agora mais ainda.
Li sua resposta em baixo, e claro pode estar certo que ja sabia que não eras complicado, Rss, mas foi bom a sua confirmação.

Um beijo no ♥

o¤° SORRISO °¤o disse...

Oi Daniel. Sabia qua João Moisés retornaria, mais cedo ou mais tarde... :-)

Ótima quarta.

Beijos mil! :-)

Daniel disse...

Renata

Tive já o cuidado de ler traquilamente o teu bom tabalho. O tiangulo amoroso terá existido, se bem me lembro da hsitória. Porém nunca é demais recordar.
Beijo, Daniel

Daniel disse...

poetaeusou

Ups, devias estar em Licboa, quando chegue, foi uns dias abtes de haver fogo no D. Maria, mas recordo bem o Carlos de Jornais e otras figuras. Recordo o Puscas, o Ensébio, que é meu visinho e me foi apresentado, há pouco por um amigo comum.
Sabes que junto à velha Secretaria de Rua do Regedor, treinadores de bacada faziam e desfazim linhas... eram um espanto!...
Abraço, Daniel

Daniel disse...

José Torres

Essa coisa dos amores do antigamente, para mim teria havido dificuldades acescidas, por pensar uto em termos de trabalho, porque Lisboa era um mundo diferente até nesse aspecto, mas sempre a eterna disponibidade fazia falta.
Licor Natal só havia na Ginginha Popular, fabrico próprio, como o Timpanas, o Eduardino ali, por causa de direitos de patente. A firma designava-se, Salgado & Martins e fabricava os licores na Antero de Quental.
O Licor Natal era a especialidade da Caso, mas havia o Licor de Ginja, o Rhum, o Licor de Tangerina, tudo de fabrico próprio.
Nos tempos de Santo António, ainda não devia haver os prazeres daque néctares
Calcula que a Ginginha ainda existe e vende ginja.
Evidentemente, que foi reciclada!
Daniel

Daniel disse...

Chinha

Ao tempo, aqueles meios fascinavam!...
O meu objetivo é procurar compensasão, no interesse que possa despertar1
Um beijo, Daniel

Daniel disse...

Sam

Se gostas, fico feliz, porque a saga vai continuar.
Também desejo uma boa semana, com deijo.
Daniel

Daniel disse...

Anja Rakas

Ness época não havia a revolução sexual, o que era muito mais penoso, para ambos os sexos. Agora, não é preciso esconder nada.
Já agora um pormenor, quando, acontecia uma "desgraça", escondia-se o caso, como casamento de madrugada.
Lá vinha a bençao divina, mas por favor!...
Oh... mas sepre huve finais felizes!...
No fim de tudo é melhor acabar com o Angélis e beijos. Amén... Daniel

Daniel disse...

Paula Raposa

A tua presença também é muito agradácvel, e faço questão de agradeçer.
Beijos, Daniel

Daniel disse...

O sussurrar do corpo

Também gosteo da visita e agradeço.
Daneil

Daniel disse...

Camila

Se era regra!... E se o pobre rapaz consegui levar a namoradinha on cinema, levava escolta e tinha de pagar três bilhetes. Chato, mas também paguei!
Só o casamento libertava.... claro que sempre havia que furase a regra!
Daniel

Mac Adame disse...

O dom da ubiquidade deve ser de facto "santantoniano", que quase todos dizem que nasceu em Lisboa, mas há quem também diga que nasceu em Pádua. Santo casamenteiro, segundo ouvi dizer. Se calhar gostava mesmo era de sexo, mas como nesse tempo era o casamento que o permitia, daí ser casamenteiro. Digo eu, que não percebo nada de santos. Seja como for, um bom momento de prosa.

Daniel disse...

Marta

E como os tempos mudaram, talvez nem a mim parecesse tão acentuada a mudança.
Vi, tratrar Reruda, como fazes torna-se interessante.
Um abraço e beijos, Daniel

Daniel disse...

Carla

Sim, o tempo é outro e tavez o próprio!... Segundo o que dizes.
Beijos, Daniel

Daniel disse...

F@

Pá, toma mil e duzentos e arranja-me ai um capiléee à Benficaara. O Santo António gostaria do camarada!...
Bjs, Daniel

Daniel disse...

Naela

A época fasciono-me bastante, mas ali estava destinado a ser ponto de passagem. O ofinco era para estudar e evoluir. recordação é interessante e marcou!...
Beijo com doçura, Daniel

rosa dourada/ondina azul disse...

Os tempos mudaram,
afinal agora há mais escolhas, mais liberdade,
mas nem por isso mais qualidade :)


Beijinho,

Maria Laura disse...

Texto interessante que reflecte bem o ambiente e as convenções da época.
Obrigada pelas tuas visitas.

Daniel disse...

Ivete

Volta sempre, agradeço as boas palavras.
Agradeço. Bjs, Daniel

Daniel disse...

Vanuza

Procuro apresentar bem!... Identifico-me com os "monstros" de que falas, especialmente com o romântismo do Camilo, porém acho muito boa vontade da tua parte e agradeço.
De Lisboa, vai um abraço.
Daniel

Daniel disse...

Mariam

Sabia de quem falava, mas achas que alguem vale assim a perda de uma fortuna? Então a mulher não é igual ao homem? Para mim é, biologicanente diferente, mas ambas se completamm e devem ser solidários.
LOL... com um rasgado sorriso amigável e desejo de boa continuação de semana. Daniel

Daniel disse...

Bandys

Para quê complicar, se a podemos tornar a vida fácil? É sempre bom ver-te.
O meu coração sensibilizou-se com o beijinho e retribue.
Daniel

Daniel disse...

Sorrisos

O Joâo Moisés iniciou ainda agora a saga, pelo que vai, passar aqui muitas vezes.
Ficando sempre de braços abertos, para receber os amigos. envia beijos.
Daniel

Daniel disse...

Mac Adame

Só os de Pádua, chamam Santo António de Pádua. De facto não há dúvida ter tido o nascimento em Lisboa. Essa da ubiquidade, ná!... Tradição, só pode!
Agradecimentos, Daniel

Daniel disse...

Rosa

Há mais liberdade! Espera que se saiba usar, para que chegue a qualidade, como bem preconizas.
Beijinho, Daniel

Daniel disse...

Maria Laura

Sim procura-se retratar uma época através de ocupações de trabalho. A intenção é essa. Conseguir é outra coisa!
Também fica grato. Daniel

Daniel disse...

Cherry

Obrigado fico eu, passa sempre que o entendas.
Daniel