quinta-feira, 31 de julho de 2008

LISBOA CAFÉ - 8

SANTA ENGRÁCIA

O Bairro da Graça, na sua vetustez, pertence á freguesia de Santa Engrácia. Com outros limítrofes, formam um conjunto da Lisboa antiga, digna de ser visitada demoradamente.
No Largo onde se formavam os carros eléctricos, um dava a volta partindo, para o Norte e outro para o Sul ambos, no se vai e vem, em jeito de circunferência por Campo de Ourique. Tinha sempre encontro marcado, em cruzamento, com partida daquele local, passando no Largo do Calhariz, que fica paralelo à Travessa das Mercês.
A caminho do trabalho, João Moisés sempre passava por ali, onde se formavam havia taxativamente muita gente a acotovelar-se, esperando a chegada de um veículo de transporte, depois uma interessante luta para entrar.
Decididamente, após andar cerca de mil e quinhentos metros para chegar aquele ponto, achava mais prático e rápido descer a Calçado do Monte e fazer todo o trajecto locomovendo-se a pé até ao escritório, nos confins do Bairro Alto.
Nesse trajecto atravessava todo o Rossio onde podia ver as letras luminosas do edifício de funcionamento de uma livraria de Diário de Notícias, no mesmo se projectavam essas a dar algumas notícias do dia. Uma espécie de Internet desses tempos. Já ouvira referenciar antes a notável cena.
Estava a morar numa casa onde, com um simples assomar à janela, usufruía a grande luxo de avistar o Tejo, mas a Graça continuou sempre a conter no seu perímetro muitos mais sítios do maior interesse, como o Museu da Água, na Rua do Alviela, à Calçada dos Barbadinhos.
Na freguesia vizinha de S. Vicente de Fora, fica a Igreja de Santa Engrácia do famoso Panteão Nacional. Na altura pelo facto da velha expressão, em certos casos de lentidão dizia-se muito: “É como as obras de Santa Engrácia”!... De facto a sua construção teve início em 1862, no lugar de uma antiga capela com a mesma designação e por vicissitudes várias, só terminou no ano de 1966.
Muito estará por realçar daquele outro centro de Lisboa, como o famoso Largo da Graça, situado numa das colinas da cidade com os seus com os seus naturais miradouros.
Na altura e ainda por muito tempo funcionava ali o grande Quartel da Graça, perto do Miradouro do mesmo nome.
Começa aí a Calçada do Monte, mais propriamente uma rampa que leva à Mouraria, seguindo depois para a Baixa.
Aproximava-se o fim da morada naquela distinta zona, que tem também como vizinhança a velha Alfama, por via de um futuro casamento. Viver a dois, segundo a lei da Santa Madre Igreja e a tradição, era a maneira libertária de se poder viver com uma mulher e gerar filhos, com a aprovação dos deuses.
O frenesim da cartomancia e as pressões tentaram influenciar as escolhas. Jogavam-se boas indicações económicas efectivas ainda, com laços familiares, mas a Rosário tornara-se coisa séria, a levar até ao fim do mundo.
O João Moisés cortara com todas as hipóteses, onde houvesse dúvidas sobre a “honra feminina”, uma condição que lhe era muito cara!... Usava-se!...
Assunto arrumado, o pensamento continuava no trabalho e nas muitas incidências no seio do mesmo, sobretudo no que dizia respeito a gráficas, afinal o mundo que pensava ter merecido conhecer. Parecia estar ali a génese de toda a actividade humana, era no fundo aquele o princípio do desenvolvimento da comunicação de massas, que o homem sempre desejou.
Muitas acções laborais, sem o parecer, mereciam muita atenção de quem alimenta os seus íntimos pensamentos, que a outros podiam parecer inócuos. Pobres deles!... Podia pensar-se, se o tempo não fosse sempre o grande mestre.
Estava-se no tempo do partido único, corporizado na designação de Acção Nacional, donde emanava o Estado Novo, comandado pelo tal “lente”, senhor António de Oliveira Salazar, com olhos e ouvidos a envolver toda a sociedade, como o caso que se passou na Graça. O João Moisés encontrou casualmente um indivíduo que fora seu colega na tropa, o que mereceu a confraternização à roda de uma mesa de Café.
Ao contrário do que era conhecido, numa demonstração provocatória, o antigo colega deu em representar de ébrio para o empregado que servia e sem que nada o fizesse prever, com ameaças de mau gosto, tirou do bolso e mostrou o seu cartão de informador da temível PIDE.
O revelado informador nunca mais foi encontrado, ficou a lição. Naturalmente o que interessava era incutir o medo.
Aconteciam muitos casos a indiciar o objectivo controle da polícia política, como o dos anúncios de jornal a promover o recrutamento de pessoas, que tivessem feito a vida militar, para as várias tarefas nas empresas e sobretudo nas universidades.
Tinha-se iniciado uma forte emigração, onde funcionava muito a clandestinidade, tráfico a que muitos se dedicavam e que conviria ao governo de Salazar. Só alguns iam parar a prisões políticas. Era dado o sinal contrário através de denúncias.
Era neste ambiente que passava uma certa corrupção, sempre em pequena escala. Afinal o chefe da oficina daquela empresa gráfica, além de inegável competência técnica, era altamente especializado em procurar alinhamentos por baixo, para melhor fazer o seu trabalho de controlo, o que lhe dava espaço para o seu “negócio” paralelo interno.
Nem tudo chegava ao filtro investigador de João Moisés, muita acções levadas a efeito, como o afã de angariar trabalhos, nomeadamente de offset, sabendo que a firma não tinha a necessária dimensão para os executar, mas feitos externamente de certo que trariam boas comissões, tanto mais que chamava a si a orientação.
A João Moisés cabia estabelecer todos os contactos e podia apurar, que os desenhadores de fora eram muitas vezes chamados a colaborar. Os clientes ouviam por tradição do grande chefe – “esses senhores debitam alto” – pelo que não sabia o que iria custar cada trabalho de desenho.
Filtrando também por ai, os respectivos artistas tinha de, à partida adicionar o custo de uma comissão destinada ao chefe, mesmo que a obra fosse de pequena dimensão.
Com todas as mais valias proporcionadas, por todos os bónus indevidos, nunca perdia ocasiões de afirmar que a entidade patronal não o remunerava consoante o seu valor técnico, porém a certa altura apresentou a demissão e de imediato foi vê-lo, à partida sem fortuna pessoal, a adquirir a sua própria empresa gráfica.

Daniel Costa – in “JORNAL DA AMADORA”

31 comentários:

Justine disse...

Interessante reconstituição de uma época soturna e perigosa.
Ligada à Graça por afectos vários, soube-me bem ler a história passada nesse "decor".
Obrigada pela visita ao meu "canto"

Laura disse...

Olá daniel; de Igreja de Santa Engrácia andamos nós cheios..o raio da sobras que nunca mais acabam e não deixam as pessoas fazer a sua vida... e até prejudicam os negócios d emuitos..
De resto o sujeito até fez bem em sair dali e montar negócio..patrões pagavam sempre mal demais!...
Beijinhos da laura...

impulsos disse...

Olá Daniel!
Muito interessante o teu texto, pois leva-nos ao centro de uma outra Lisboa, num outro tempo,onde, embora os sítios permaneçam nos mesmos lugares de hoje, as aspirações dos que por lá passavam, eram tão diferentes das dos nossos dias...
Eu já conhecia parte desses tempos e do seu modo de vida, não que os tivesse vivido, mas através das histórias do meu pai, que por lá vivia a partir da segunda metade da década de 50. Tal e qual como descreveste, até os informadores da famosa terrível e temível PIDE...

Gostei de viajar contigo!

Beijo

Daniel disse...

Justine

Como o outro diz: "fui muito feliz na Graça". O prédio onde morei, num primeiro andar, da janela via-se o Tejo e Santa Engrácia inacabada.
Numa romagem de "saudade", passei há pouco, era tudo diferente.
Daniel

Daniel disse...

Laura

Qunda estiver tudo acabado, terá o mundo terminado, já pensaste nisso?
Até porque agora não há obras de Santa Engraça, para comparar.
Patrões há muitos, dantes havia os que se deixavam enganar. Agora há a corrupção!
Beijinhos
Daniel

Mariana disse...

Olá, Daniel, tudo bem?
Estou passando pra deixar um beijo, tô indo viajar e só volto na próxima terça-feira.
Moro em São Paulo/Brasil e estou indo ao Rio de Janeiro, passear.
Fique com Deus, beijo da Mariana

mdsol disse...

Outros tempos e lugares que não foram meus. Mas dá para identificar a !atmosfera"!
:)

Marta Vinhais disse...

Olá, Daniel, continua interessante esta tua descrição de Lisboa...
Quanto à tua expressão, "obras de Santa Engrácia", ainda se usa por aqui...
Obrigada pela visita e pelo carinho...Quanto ao poema que escolhi, achei-o diferente, muito simples e sincero ...
Beijos e abraços
Marta

Laura disse...

Não daniel, nada de estar o mundo terminado...Este só termina quando Deus quiser, e vais er uma enxurrada de tudo que vamos dar uma volta de 90 graus...ficamos todos de cabeça no chão e pernas para o ar (ai que figuras tristes) mas o mundo depois melhora... e a Engenharia do alto está a trabalhar nas profundezas da terra há muitos e muitos anos para que isso suceda. A terra depois ficará mais plana e teremos mais terreno de cultivo e não haverá fome...e oa maus esses não retornarão nem em espirito jamais, serão esses os que arderão como carvão!...assim não te apoquentes o mundo não acabará no nosso tempo, nós é que passaremos por ele ainda...
Que treta de fora d ehoras. estive quase todo o dia com dor de cabeça, o Nuno anda a preparar as cosias para ir para Inglaterra trabalhar, foi o meu primeiro rebento e nunca nos separamos a não ser nas férias quando vai com os amigos, já vai fazer 29 anos, mas tem de ir, aqui como técnico de radiologia ainda não coestá previsto são duas semanas de formação ele falar fala impecavelmente pois é Sul Africano, aliás são os meus 3 filhos, só dois são meus ...o outro é so filho do pai dele ehhhh, e assim trabalha 3 semanas e descansa uma e aproveita e vem até cá que as viagens são baratas...vai para o Kent, perto de Londres. e bem, mantenho-me serena, mas sabendo que a companhia dele me fará imensa falta pois ele é um filho da minha alma entendemo-nos bem e a Neid eigual, a neide chegou do Canadá anteontem e viaja pelo mundo, é uma cientista está a acabar o doutoramento, formou-se aos 21... a mais nova do curso e de notas mais altas...Posos não ser rica materialmente, mas espiritualmente posso orgulhar-me da familia que tenho (marido à parte ehhh que é calado caladinho caladão)...beijinho d alaura..

Marta Vasil (pseud.de Rita Carrapato) disse...

Obrigada por ter visitado o meu canto, algo distante de Lisboa.
Sorvi esse retrato que nos mostrou com muito interesse, pois não conheci Lisboa nessa moldura.
Obrigada pela dádiva.

MV

Bandys disse...

Oi Daniel,
Vim te dar um beijo.
Hoje não li o texto, mas voce sempre descreve tão bem...mistura de historias.

Fique bem e tenha um noite de paz
beijos

o¤° SORRISO °¤o disse...

Oi Daniel.

Opa... João Moisés na área. :-)
Com precisão de detalhes que nos levam para os lugares descritos em seus textos.
Sempre maravilhoso!

Boa sexta para você.

Beijos mil! :-)

poetaeusou . . . disse...

*
esta lisboa
que eu amo . . .
,
saudações,
,
*

Eu sei que vou te amar disse...

Daniel a Lisboa que falas é a Lisboa que amo, que me viu crescer!
Interessante ler a passagem de lugares que conheço e não me canso de recordar!
Interessante a historia que descreveste e que tanto enriquece o nosso conhecimento sobre uma epoca que teve como ponto fulcral a politica de Salazar...
Um beijo com muito carinho

Sombra de Anja disse...

Voltei.
A ausência faz-me voltar a recantos doces perigosos.
Texto forte.
Tuas palavras me enternecem, tiram um pedacinho do chão que piso.
Obrigada doce Daniel.

Beijos

Daniel disse...

Impulsos

Como o ojectivo múmero é o da partilha, fico satisfeito que gostes.
Isto passava-se na segunda metade da década de sessenta. Há pouco tempo passei pelo sítio, o que aliás tenho feito. Tudo na mesma fisicamente, quer dizer Lisboa antiga, com vidas mais modernas!
Daniel

Daniel disse...

Mariana

Sabias que S. Paulo alberga quase tantas pessoas como Portugal inteiro?
Mas pelo que julgo saber o Rio é mais atraente, pelo menos, é o que por aqui passa!
Obrigado e boa viagem!...
Beijo
Daniel

Daniel disse...

Medsol

Foram locais de morada de muito boa gente. Onde morei, chegou a fazer para da parte mais moderna, do sítio.
Daniel

mar disse...

ainda hoje me recordava de ti e dos teus escritos em jornais de mundos diferentes, recordei-me do perfume das tuas palavras para te procurar daniel e vim cá ler-te de novo sempre.
um beijo
mar

Daniel disse...

Marta

Antes ouvia muito: "é como as obras de Santa Engácia", mas há bastante tempo não oiço a expressão.
Normalmente, comento o que gosto!
Um beijo, com retribuição do abraço.
Daniel

Daniel disse...

Laura

O mundo todos os dias, para muitos. Não havendo pressas, vamo-nos divertindo ao lado dos amigos!
Ninguém cá fica para sopas, tanto mais que já não há mais arcas de Noé. Quando chegar a "bruxa", inevitavelmente, obdecemos e pronto.
Olha não sinto falta da filha, está perto e vem, com a prole, almoçar aos Domingos.
É muito edificante para os pais que os filhos, singrem. Também porque a árvore conhece-se pelos frutos.
Beijinho
Daniel

Daniel disse...

Laura

O mundo todos os dias, para muitos. Não havendo pressas, vamo-nos divertindo ao lado dos amigos!
Ninguém cá fica para sopas, tanto mais que já não há mais arcas de Noé. Quando chegar a "bruxa", inevitavelmente, obdecemos e pronto.
Olha não sinto falta da filha, está perto e vem, com a prole, almoçar aos Domingos.
É muito edificante para os pais que os filhos, singrem. Também porque a árvore conhece-se pelos frutos.
Beijinho
Daniel

Daniel disse...

Marta Vasil

Bem, com a Net nã há distâncias, no nosso minúsculo PC temos o mundo.
Normalmente quem só passa pela cidade, apenas vai à Baixa. Agora ao Parque das Nações, talvez ao Colombo, mas por debaixo da terra.
Obrigado eu!...
Daniel

Daniel disse...

Bandys

Sei que os meus textos são um pouco longos, mas ficas sempre à vontade.
E como toda a gente deseja paz, vamos nessa!
Beijos
Daniel

Daniel disse...

Sorrisos

O João Moisés agradece a visitinha e a apreciação.
Deixa beijinhos, Creio que para ti, já posso desejar bom Sábado.
Beijos
Daniel

Daniel disse...

Poetaeusou

Realmente é a velha Lisboa que amo. Agora está memos populosa a maior.
Saudações
Daniel

Daniel disse...

Naela

Esta Lisboa é que sempre amei, mesmo quando sabia s+e que ficava a norte.
Acabei por conhecer muito bem a cidade, a trabalhar, o João Moisés falará disso.
També penso que toda a história tem interesse, na comparação do ontem e do haje. Procurarei a palavra de algum editor.
Agradeço e retribuo o beijo e o carinho.
Daniel

Daniel disse...

Anja Rakas

Fica então enternecida!...
Gostosamente, recebo a doçura.
Retribuo e deixo beijo.
Daniel

Daniel disse...

Mar

Verei se percebo algo de esoterismo!
Passa sempre, a casa fica franqueada!
Beijo
Daniel

Menina do Rio disse...

Apesar de não conhecer teu país, gosto imenso de ler-te!

Tem um ótimo final de semana, Daniel

Um beijo

Daniel disse...

Menina do Rio

Aos poucos vais conhecendo, como faço ideia de todo o Brasil, pela muita correspondência, que daí me chegava e agora por este meio.
Beijo de bom fim de semana.
Daniel